O português amador da gaia ciência, que, nado e criado neste mais velho rincão do país, "riberas del Duero arriba", fosse no século XIII à corte de Castela, onde tantos acudiam a terçar cantigas de amigo, de escárnio, e serranilhas, com os trovadores da aula régia de Afonso o Sábio, sem embaraço na sua língua falaria e versejaria. À roda do monarca, organizador da actividade intelectual de Espanha, como D. Dinis, seu émulo em poesias e letras, o foi em Portugal, modula-se o idioma galego-português, literariamente preferido ao castelhano pela, sua flexibilidade graciosa ...
Se mais de três séculos andados arribasse a Espanha o adventício de Lisboa, a amada cidade de que Lope de Vega decantava os passeios, teria ainda o orgulho de divisar por toda a parte portugueses em grandeza culta: poetas e escritores nos cenáculos madrilenos, professores nas cátedras salamanquinas, validos e médicos de câmara na corte filipina. A língua não esquecera, mas substituíra-a havia muito o castelhano, no auge da sua supremacia idiomática...
Outro rodar de três séculos e estamos na actualidade, em que a cena muda de todo em todo. Portugueses, já quase não demoram por terras de Castela; das brandas modalidades da língua de Camões não há completa compreensão auditiva e mal iria ao trato da conversação, se a evolução linguística as não talhara tão parelhas. Por outro lado, a nossa musculatura vocal, destreinada para a maior parte, mal se atreve à articulação, rude mas aberta, da enérgica e clara língua de Cervantes…
Volte-se ao denominador onomástico comum, tanto mais quanto há meio de evitar confusões melindrosas de nacionalidade: chame-se Hispânia à península, Hispano ao seu habitante onde quer que demore, hispânico ao que lhe diz respeito. O papa João XXI, português de Lisboa, afamou-se como mestre e praxista das escolas medievais, com a rubrica de Pedro Hispano. O Fernando de Bulhões, "il Santo" de Pádua, também glória do berço lisboeta, se dizia de cor hispana. O portuguesíssimo judeu de Castelo Branco, Amato Lusitano, um dos grandes mestres da Renascença Médica, a cada passo se apelida hispano, envaidecendo-se aliás do ninho paterno, e das façanhas dos seus compatriotas lusos. Não desfaz no foro nacionalista, nem implica com o país que a cada um pertença; é um apelativo histórico-geográfico, tal como para as nações da península setentrional da Europa o de Escandinavo...
Se em parte alguma da Europa há raças puras, muito menos neste seu calcanhar ocidental, onde tantos povos sucessivamente se acamaram e amassaram numa mescla indestrinçada — o verdadeiro caos étnico. Querer que a faixa atlântico-portuguesa seja o logradoiro duma raça extra-hispânica..., sobre não passar duma criação imaginária, toca no absurdo e até no ridículo: mal vai ao patriotismo que se alimenta destas abusões...
Desde o banco das escolas importa cunhar no espírito dos alunos que somos parte de um todo. Ao ensinar-lhes a geografia, a história, a literatura, logo nos cursos secundários, faça-se a integração hispânica. Ponha-se ponto no vicioso sistema de cindir o solo e o clima, de apartar o passado, de separar as letras, numa unilateralidade onde, sob a aparência de um acto estritamente nacional, se esconde uma falsidade contra a natureza e contra a história, e um erro anti-pedagógico e anti-científico. Este ilogismo talvez domine mais em Portugal que na Espanha; não há mais que olhar para os mapas do chamado continente português, que tantas vezes recortam o perímetro da raia terrestre, como se se tratasse de uma ilha. É um laivo triste e significativo.
Inculque-se aos discípulos o amor do passado e o culto da pátria tradicional, tal como nos países italianos, germanos, escandinavos e outros, que na chama crescente desse sentimento se depuraram e acrisolaram. Eduquem-se a rigor e a primor no seio da língua materna; Portugal tem neste ponto que bater nos peitos, repeso e vexado, diante de qualquer país, a começar pela Espanha, onde impera o respeito do castelhano. Não há nação alguma no mundo onde se tenha perpretado com maior grosseria a vandalização da própria língua, aliás tão formosa e rica. Há que confessar com mágoa que é uma vergonha pública, sem que ao menos se note para a minorar, por parte dos que deviam manter esse património, propósito ostensivo de emenda.
Nas faculdades de Letras, faça-se a consagração catedrática das duas literaturas e das duas histórias. Nas nossas desgraçadamente cava-se essa deplorável lacuna; não conheço nenhuma mais censurável na nossa instrução superior... Qual é universidade digna deste nome, por esse mundo fora, onde não sejam professadas independentemente as letras castelhanas? Quando o não fossem em parte alguma, deviam sê-lo em Portugal…
Estas reformas, fáceis de introduzir na didáctica oficial, têm de completar-se pela criação em cada país de um colégio ou escola superior de hispanologia, inteiramente binacional, com professores e discípulos — daquém e dalém — centros do ensino e da investigação de tudo quanto interesse à literatura e à ciência dos povos ibéricos, em si e nas suas aplicações ao progresso peninsular em todos os seus modos. Devidos meios seriam postos à disposição dos trabalhadores e mestres, desde as bibliotecas aos laboratórios. Dali irradiaria para o estrangeiro a notícia dos nossos trabalhos, integrando-os no movimento universal, e fazendo avultar a nossa contribuição ao tesouro geral da ciência.
Desta cooperação central partilhariam os países sul-americanos, honra e glória da colonização luso-castelhana; e a ela se aliariam os mestres e cultores que ao hispanismo consagram denodadamente talento e erudição na França, na Alemanha, na Inglaterra, na Itália e nos Estados Unidos. Um rincão regional pediria pelas suas afinidades com Portugal um lugar particular — é a Galiza, à ilharga da qual brotou a nossa nacionalidade e o nosso idioma, com uma literatura primitiva comum.
de "A intercultura de Portugal e Espanha no passado e no futuro", Porto, 1921, pág. 1 e ss, e 45 e ss. Citação de "Paladinos da Linguagem", III Vol.