«(...) Que vocábulos sobrenaturais são [estes] que ao privilégio da prioridade infantil aliam o da generalidade terreal? Crêem as mães, em sua doce e falaz ilusão (que nunca ninguém devera roubar-lhes), serem eles o apelo instintivo, o impulso congénito, a inspiração divina, com que o fruto de suas entranhas se volve ao ser que lhe deu vida! (...)»
Duas curiosas singularidades oferecem os vocábulos [papá e mamã]:
a) são universitários, isto é: incorporam-se ao léxico de todas as línguas, − salvo tal diferenciação subtil na totalidade da vogal aposta às consonâncias iteradas: ora oral aberta, ora oral fechada e ora nasal;
b) são os primeiros vocábulos que a criança tartamudeia ao ensaiar-se na linguagem; são os primeiros acentos que balbucia, logo que as primeiras sensações do ambiente despertam no cérebro a razão bruxuleante, que põe em movimento os nervos motores da linguagem.
Coïncide com a prioridade desses dois vocábulos (se assim se podem chamar) a sua universalidade.
Vem daí a ufania dos pais que enxergam nas informes «palavras» (primeiro vagido racional do tenro infante, a que o tautossilabismo empresta feição notadamente infantil e tartamuda), o apêlo directo àqueles que lhe deram ser e vida: mamã, pa-pá, tartareiam universalmente os infantes de todos os países e em tôdas as línguas! ¿Que vocábulos sobrenaturais são êsses, que ao privilégio da prioridade infantil aliam o da generalidade terreal? ¡Creem as mães, em sua doce e falaz ilusão (que nunca ninguém devera roubar-lhes), serem êles o apêlo instintivo, o impulso congénito, a inspiração divina, com que o fruto das suas entranhas se volve ao ser que lhe deu vida!
¡Oh, a doce ilusão fementida das mães! Rude, bruto, desalmado, fôra quem se propusesse esvaecer-lhes a falaz ilusão, − quem, dando ouvidos à Fisiologia, filha que se diz da Sciência (que não da Fantasia), saísse a proclamar:
− Má, Pá são articulações resultantes da contracção bi-labial que faz o infante no impulso da fome, no movimento instintivo com que se declina à sucção da têta materna. Má, pá valem por «tenho fome»: o tautossilabismo má-má, pá-pá indica a iteração do apêlo ou reclamo, feita já com insistência ou energia.
Razão, pois, não assiste aos etimologistas, todos acordes em considerar Má e Pá raízes onomatopaicas. Tal não são, porque a onomatopeia pressupõe a pré-existência de ruídos que impressionam o sentido de audição (o sentido preceptor da linguagem) a ponto deste torná-los paradigma ou padrão de vocábulos decorrentes, meros consectários daquela impressão. São antes RAÍZES FISIOLÓGICAS (as únicas, talvez, em toda a linguagem), porque decorrem de um movimento fisiológico inerente à função orgânica, qual a junção e contracção dos lábios, no impulso reflexo de apreender, pela sucção, o leite materno.
in Revista de Língua Portuguesa (Rio de Janeiro, 1921), com a transcrição do terceiro volume da antologia Paladinos da Linguagem (edição Aillaud e Bertrand, Lisboa, 1921), organizada por Agostinho de Campos. Manteve-se a grafia e respetiva norma originais.