Pantomineiro e pantomimeiro
Variação linguística e debate político
Num artigo do jornal Público, de 05/12/2025, intitulado "Ventura no divã", da autoria do professor universitário e ensaísta António Guerreiro, lê-se no sexto parágrafo:
Catarina Martins chegou a chamar-lhe “tolo” e “pantomineiro” (em vez de “pantomimeiro”), tentando no entanto, em vão, retomar as regras e disposições do debate político.
Importa registar que se admitem as duas ortografias, pantomimeiro e pantomineiro, esta última consagrada pelo uso, tal como pantomina, conforme se escreve no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, na Infopédia (aqui e aqui) e no Dicionário Priberam.
Do ponto de vista histórico, não há dúvida de que pantomimeiro e a palavra donde deriva, pantomima, são as formas mais corretas. Embora no Vocabulário da Língua Portuguesa (1966) se acolha pantomima e pantomina, saliente-se que a segunda se classifica como variante da primeira, donde se infere que se deve dar prioridade normativa a pantomima.
O significado mais básico de pantomima é o de «arte de representar uma cena, através de mímica, movimento ou outros meios de expressão, sem recorrer à fala» (dicionário da Academia das Ciências de Lisboa). É adaptação do latim pantomῑma, ae «atriz que representa por gestos», por sua vez proveniente do grego pantómimos, ou «ator que representa apenas por meio de gestos» (Dicionário Houaiss). As fontes consultadas não o propõe, mas pode-se aceitar que, na passagem da forma latina para a portuguesa, a palavra já tinha uso adjetival, subentendendo «arte (ou cena) pantomima», ou seja, «arte (ou cena) de um pantomimo/a».
Acrescente-se que pantomima não é palavra patrimonial, diretamente herdada do latim vulgar, por via popular. Na verdade, é palavra culta, cujo uso não será muito anterior ao séc. XVIII (cf. Dicionário Houaiss). É, aliás, curioso que na Prosodia, um importante dicionário bilingue seiscentista da autoria de Bento Pereira (1603-1681), se registem o latim pantomimus e a sua tradução no português da época: «O arremedador, o boubo na comedia; item a poesia» (Corpus do Português). Parece, portanto, que até ao século XVII pouco ou nada se usava pantomimo ou pantomima, o que talvez se compreenda, dado que em castelhano, língua com o que o português esteve em estreito contacto, só há atestações de pantomimo nos finais do século XVI (cf. Dicionário Crítico Etimológico Castellano e Hispánico, de Joan Coromines e José Antonio Pascual).
Mas é precisamente em castelhano que se documenta uma variante com -n-, pantamino, em paralelo, portanto, com a variante portuguesa pantomina. E importa realçar que as atestações setecentistas da palavra já exibem a dissimilação, isto é, a diferenciação dos dois mm no começo de duas sílabas contíguas, com o resultado de o segundo m passar a n: pantomima, pantomimeiro > pantomina, pantomineiro (cf. Corpus do Português, de Mark Davies).
É provável que a palavra se tenha popularizado, já com m > n e com intenção depreciativa e até como termo pejorativo, registo em que podem ocorrer deturpações. É o caso, por exemplo, de pernóstico, vocábulo de uso popular que vem do termo erudito prognóstico e se atesta desde o século XVI (cf. Dicionário Houaiss).
Em conclusão, há termos de origem culta que entram na linguagem popular e adquirem valor depreciativo ou pejorativo. Nesta mudança de registo, ocorrem também fenómenos de alteração fonética.
