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Controvérsias

Da correria e da “verdade suprema” no reino dos "tik toks"

A leitura num mundo a velocidade alucinante

Quando os seus pés afrouxaram a pressa
Que retira o decoro a todo o gesto, 
A minha mente, antes restringida, 
Alargou os seus horizontes

Dante, Divina Comédia. Purgatório III, 10-12 (citado por Lamberto Maffei em O Elogio da Lentidão, Ed. 70, 2018).

Há uns dois anos, uma jovem que frequentava o 7.º ano e ia fazer teste de História, comentou comigo, com enorme euforia, que tinha passado a tarde anterior a ver no Tik Tok vídeos sobre a rainha Maria Antonieta e sentia-se absolutamente preparada e conhecedora de toda a matéria, atendendo à credibilidade bíblica desta rede social, divulgadora de verdades supremas incontestadas e incontestáveis. Ah, pois, livros? Letras para juntar ou soletrar? Frases aborrecidas que dão uma trabalheira enorme a perceber, para quê? Bastam uns kahoots e uns vídeos curtos para que a aprendizagem flua como água da ribeira. Do resultado nunca soube, pois esqueci-me de perguntar. Mas, recentemente, dizia-me a minha irmã, investigadora na área da Química, que também na divulgação científica havia a tendência crescente para os vídeos e as redes sociais.

Longe muito longe, vão os tempos que deram origem à lenda de um Isaac Newton a dormir uma sesta, encostado a uma macieira, até ao momento em que lhe cai uma maçã na cabeça, momento inspirador da lei da gravitação universal. Com efeito, hoje não há tempo para sestas, poucos sabem o que é uma macieira e a própria queda da maçã teria de dar umas fotos para as redes sociais, mais uns posts e um reel , seguidos de um podcast com Newton e a maçã, para se saber os motivos da queda, o seu impacto, talvez o trauma daí resultante para ambos – o que não deixaria tempo para reflectir nem formular qualquer tipo de teoria. Sim, é este o nosso mundo, a correria louca, a competição desenfreada, no final da qual, na maioria das vezes, não triunfa quem mais produz, nem que é melhor, mas quem tem os “padrinhos” ou “madrinhas” mais influentes, em qualquer que seja o contexto ou sector.

Também na literatura, há um tsunami de festivais, feiras, encontros, lançamentos, apresentações, sessões, vídeos, reels, sem fim… e o que sobra disto? Haverá tempo para ler, escrever, reflectir, criar, nos intervalos deste frenesim, a que soma todo o bulício do quotidiano? Sobrará de tudo isso algo mais para além das fotos e dos vídeos nas redes sociais, dissolvidas minutos depois na espuma do esquecimento? E o que acontece aos mais de 20 mil livros publicados anualmente só em Portugal, pelas largas centenas ou milhares de “escritores”,   inúmeras “editoras”, enquanto o número de leitores e de livrarias é cada vez mais reduzido?

Perante todo este cenário, termino com Lamberto Maffei, médico e cientista italiano, que, no seu livro O Elogio da Lentidão aponta o excessivo uso do pensamento rápido (instantâneo, automático, necessário em determinadas situações), em detrimento do pensamento lento (reflexivo, que exige tempo, memória, dúvida).  Deste modo, vivemos num estado de hiperactividade imposta, onde tudo é imediato, os livros têm muito menos validade do que os iogurtes, tudo se descarta e substitui numa velocidade alucinante, que desagua numa «anorexia dos valores», a par de uma «bulimia de consumo» enraizadas num pensamento marcado pela superficialidade e futilidade, que não deixa espaço ao essencial.

A esta tema regressarei novamente, mas deixo a pergunta: corremos rumo a quê se as únicas coisas que temos garantidas são a morte e os impostos? É que até o grande Dante refere que o afrouxar do passo alarga a mente.

Fonte

Texto publicado no Jornal do Algarve em 04/10/2025 e aqui transcrito com a devida vénia, mantendo a ortografia de 1945, seguida no texto original.

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