A influência tupi no português do Brasil - Diversidades - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Início Outros Diversidades Artigo
A influência tupi no português do Brasil
A influência tupi no português do Brasil
A visão do linguista Glastone Chaves de Melo

«A influência do tupi incidiu principalmente sobre o léxico, sem alterar a estrutura fonológica, morfológica e sintática do português

 

Entre as páginas 41 e 72 do seu livro A Língua do Brasil, o filólogo e linguista Gladstone Chaves de Melo analisa a influência do tupi sobre o português. 
Ele observa que, entre 1500 e 1720, o tupi sobrepujou o português, sendo três vezes mais usado pela população, enquanto a língua portuguesa se restringia a contextos comerciais, administrativos e familiares de origem lusitana. Catequistas, colonizadores e bandeirantes falavam essa língua indígena, deixando marcas profundas na toponímia do país, apesar das tentativas régias de proibir o uso da língua geral no século XVIII.

Considerando o português uma língua mais evoluída e rica, produto de uma cultura desenvolvida, o autor afirma que ela acabou por se sobrepor ao tupi, que permaneceu apenas entre indígenas amazônicos. Reconhece, porém, que a influência indígena foi inevitável, ainda que o grau de sua extensão e intensidade deva ser analisado com cautela. Muitos estudos, segundo ele, carecem de isenção e deixaram aspectos importantes sem exame.

A influência inquestionável se manifesta sobretudo no vocabulário geográfico – topônimos como Ceará, Maracanã e Pindamonhangaba –, na antroponímia (Iracema, Oiticica), em morfemas incorporados à formação de palavras (cajazeira, umbuzeiro), na fauna, na flora e em diversos objetos, comidas, crendices e expressões idiomáticas. Apesar disso, a ampliação lexical representa mais um fato próprio da norma brasileira do que uma transformação estrutural do sistema linguístico do idioma.

Gladstone registra a existência de mais de 150 verbos com radicais tupis, número que supera o de origem árabe. Ressalta, contudo, que o português possui grande capacidade de derivar verbos de substantivos, o que facilitou a assimilação total do material linguístico indígena aos moldes morfológicos portugueses. Reforça também que o português do Brasil conservou, em larga medida, o sistema sonoro, a entonação, a pronúncia, a morfologia e a sintaxe do português dos séculos XV e XVI, o que explica sua semelhança com o português arcaico.

O linguista critica tanto os estudiosos portugueses, que ignoravam os avanços da filologia brasileira, quanto os brasileiros que, movidos por lusofobia, desejavam (desejam?) repudiar o legado europeu e advogar uma independência linguística impossível. Como a maior parte dos estudiosos de sua época, Chaves de Melo defende a unidade da língua portuguesa, reconhecendo a contribuição mútua das variedades de ambos os lados do Atlântico.

Sublinha, diversas vezes, que a influência do tupi incidiu principalmente sobre o léxico, sem alterar a estrutura fonológica, morfológica e sintática do português, sendo a etimologia de muitas palavras indígenas, contudo, de difícil determinação. Daí, aponta exemplos de termos erroneamente considerados tupis, como canga (chinesa), canjica (de canja, possivelmente malaiala), catana (japonesa) e Goiás (provável origem espanhola).

Para o autor, as conclusões que atribuem ao tupi influência estrutural sobre o português são insustentáveis – assim como o árabe exerceu influência lexical sem modificar a estrutura das línguas ibéricas, o tupi não alterou o sistema do português brasileiro.

Citando Meillet, o autor observa que a aquisição de uma língua nova por um povo diferente gera simplificações e imperfeições, mas essas tendem a ser corrigidas por novas ondas linguísticas e pela força unificadora da língua escrita. Mesmo assim, certas alterações de origem indígena se incorporaram ao português popular, especialmente entre camadas analfabetas, que não sofreram o influxo nivelador da escrita.

O filólogo adverte, porém, que nem tudo se pode atribuir à influência tupi, como fazem alguns estudiosos, pois muitos fatos linguísticos do PB têm explicação românica ou histórica: a posposição do pronome indefinido – «gente muita», «chuva muita» – existia no português arcaico; a iteração de sufixos diminutivos é comum em outras línguas ocidentais; a redução andando > "andano" ocorre também em outras línguas românicas; o ensurdecimento do r final (comer > "comê") é fenômeno europeu; a semivocalização do lh ("trabaio", "muié") pode ser atribuída à tendência românica ou à influência africana, e não indígena; ao chamado gerúndio redobrado ("falá-falano"), trata-se de um processo intensivo comum em diversas línguas românicas.

Gladstone refuta ainda a origem tupi do uso impessoal de ter ("tem festa hoje"), pois a concorrência entre ter e haver já vinha do latim vulgar. Contesta também que açu e mirim  funcionem como sufixos, considerando-os adjetivos, e reconhece apenas -rana e -oara como possíveis formantes, restritos à Amazônia. Do mesmo modo, rejeita a ideia de que a pronúncia clara das vogais pré-tônicas (pEssoa, mEnino) ou a nasalização de vogais antes de m e n derivem do tupi, mostrando que tais fenômenos têm base românica, eram próprios do português dos séculos XVII e XVIII.

Após criticar estudiosos que afirmam influências sem provas, como Gonçalves Viana, cuja generalização carece de base empírica, o autor conclui que muitos fenômenos tidos como brasileirismos são, em verdade, arcaísmos lusitanos. Agora, Gladstone não nega a existência de alguma interferência tupi na fonética, morfologia e sintaxe; apenas propõe suspender o juízo quando outras explicações são prévias à influência indígena.

O autor associa ainda certas características do português brasileiro, atribuídas ao tupi, ao dialeto caipira, influenciado sobretudo por simplificações africanas, como a redução de flexões verbais ("eu tava", "tu tava", "eles tava") e a perda de marcas de plural ("os home tava"). Fenômenos fonéticos como redução e aglutinação («os homens» > "u zome") ilustram essa tendência, embora se observe, com a escolarização e os meios de comunicação, um recuo dessas formas. 

Ao fim, Gladstone Chaves de Melo encerra sua análise advertindo os "tupinistas" de certas conclusões apressadas. Prudente, incentiva o estudo sério e científico das línguas indígenas nas universidades, a fim de delimitar com precisão a verdadeira extensão da influência tupi sobre o português do Brasil.

Fonte

Artigo incluído em 20/10/2020 no mural Língua e Tradição (Facebook).

Sobre o autor

Fernando Pestana é um gramático e professor de Língua Portuguesa formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestre em Linguística pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Atua há duas décadas no ensino de gramática voltado para concursos públicos e, atualmente, em um curso de formação para professores de Português.