O que é que esperamos de um título como este Viagem por um País Longo e Estreito (Travel in a Thin Country)1?
Esperamos encontrar o que se encontra nos bons relatos de viagem: a experiência vicária de uma ida e de uma chegada; o fascínio sempre renovado pela descoberta de um novo local; a diversidade dos testemunhos recebidos. Tudo isso está no livro.
Há, porém, em muitos passos da tradução para o português opções muito questionáveis.
Eis um restrito número de exemplos.
1. No título: Viagem por um País Longo e Estreito
O problema está na preposição: não será «Viagem através de um país…» ou «Viagem num país…». A preposição por aliada a verbos de movimento participa em construções iterativas, como em «viagens/ deambulações/ passeios por um país…»
2. No corpo do texto
a) «Arrancámos novamente e achei que poderíamos ainda chegar a Arica por volta da meia-noite. (…) Foi a primeira de muitas viagens que demoraram muito mais do que inicialmente seria jamais possível imaginar, e ao fim dos meus seis meses no Chile tinha um sentimento de realização cada vez que chegava a um local.» (p.39)
Os tempos verbais não estão em correlação. Na primeira frase citada, o ponto de referência temporal é o início da acção da viagem, localizado no passado (daí o pretérito perfeito em «arrancámos») e há, a partir desse ponto, projecção de acções futuras (daí o futuro do pretérito em «poderíamos»). Na segunda frase citada, o ponto de referência é colocado no fim da acção da viagem. Isso mesmo nos é dito pelo adverbial «ao fim de». Mas, se assim é, então não se percebe o uso do imperfeito no segundo segmento dessa frase – «e tinha um sentimento de realização cada vez que chegava a um local.», pois o imperfeito coloca o ponto de referência temporal dentro do decurso da acção. Muito brevemente: a expressão gramatical contradiz a expressão lexical. Há também a notar uma densidade inusual de advérbios em «muito mais do que inicialmente seria jamais…» Finalmente, há informações em associação sem que se explique que mútua pertinência as une: o que é que a sensação de realização tem a ver com facto de as viagens demorarem muito?
b) «A maior parte das pessoas, segundo a minha experiência, não eram apenas anti-semitas, mas eram-no abertamente; até pessoas normalmente liberais ostentavam, com serenidade, um sentimento distinto de desprezo em relação aos judeus. Isto era uma faceta de uma sociedade amplamente católica dentro da qual o pluralismo cultural era apenas um sentimento obscuro mais visível do que no Irão. Mais à frente durante a viagem, fiz perguntas a um conhecido judeu, membro do Parlamento, acerca do assunto.» (p.127)
Passemos adiante a silepse (em «A maior parte das pessoas … não eram anti-semitas…”), bem como a disfuncionalidade do conector «mas» (em «não eram apenas anti-semitas, mas eram-no abertamente…»), aceitemos o sentido (irónico) de «distinto» (em «um sentimento distinto de desprezo em relação aos judeus.»), para chegarmos directamente à comparação ininteligível: «era apenas um sentimento obscuro mais visível do que no Irão.»
c) «Os numerosos argentinos que passeavam pelas ruas irritavam Pepe. Por todo o Chile, as pessoas começavam zelosamente a minha educação pelo habitual golpe argentino, e era sempre baseado nos dados históricos confusos centrados nos anos de 1978, quando a Argentina “roubou” a maior parte da Patagónia (na realidade foi assinado um tratado).» (p. 128)
Repare-se na activação de «habitual» neste contexto: o adjectivo afecta «golpe», mas o «golpe argentino» é uma acção isolada, não recorrente. O que é habitual é «começar zelosamente a minha educação», mas não é isso que está dito.
d) «Em 1973 os pobres não sabiam o que eram os direitos humanos; nem sequer sabiam com certeza que tinham algum.» (p. 133)
Neste passo, pelo menos, é fácil fazer a correcção:
Em 1973 os pobres não sabiam o que eram os direitos humanos; seguramente, nem sequer sabiam se tinham algum.
1WHEELER, Sara 2002 – Viagem por um País Longo e Estreito. De Arica à Terra do Fogo, 4200 quilómetros pelo Chile, Lisboa, Publicações Europa-América.