« (...) Hoje fala-se em tons acesos sobre se um homem se pode sentir uma mulher ou se uma mulher se pode sentir um homem. Camões estava muito à frente de tudo isso. (...)»
Diz-se que, nos remotos anos salazaristas, não se podia dizer em Coimbra que Camões era um poeta maneirista, porque isso daria a entender que ele era amaneirado, o que por sua vez corria o risco de resvalar também para «outra coisa». Quando Vítor Manuel Aguiar e Silva apresentou aqui a sua tese sobre Maneirismo literário na literatura portuguesa (isto antes do 25 de Abril), o catedrático de Literatura Portuguesa avisou-o de que, em relação a Camões, não poderia contar com o seu apoio. Para o antigo catedrático do tempo do salazarismo, Camões definitivamente não era maneirista. Era o cantor da gesta portuguesa, da glória dos Descobrimentos. Ponto final.
No entanto, Camões está longe de ser aquilo que os Ministros da Educação de Salazar quiseram ver nele. A poesia de Camões está cheia de situações que, se virmos o que elas são por baixo da superfície, nos deixam de boca aberta perante o facto de a Inquisição ter autorizado a publicação d' Os Lusíadas.
Hoje fala-se em tons acesos sobre se um homem se pode sentir uma mulher ou se uma mulher se pode sentir um homem. Camões estava muito à frente de tudo isso.
Todos conhecemos o famoso verso do Canto VII d' Os Lusíadas: «numa mão sempre a espada e noutra a pena», com que Camões se descreve a si próprio.
A maior parte da pessoas pensa: ah, pois! O grande herói da Índia, dos Descobrimentos, do Império! A espada e a pena, as armas e as letras!
Só que não é nada disso. A espada de que fala Camões é outra espada. É a espada dada por um pai à filha para ela se suicidar. Porquê? Porque ela engravidou do próprio irmão.
Leiamos a citação toda: «Qual Cânace que à morte se condena, / Numa mão sempre a espada e noutra a pena.»
Tudo está em percebermos quem é esta Cânace, a quem Camões se compara. Ora Cânace é uma figura das Heroides do poeta romano Ovídio, muito lido e imitado por Camões em toda a sua obra. Os versos de Camões são uma recriação dos seguintes versos de Ovídio: «na mão direita segura o cálamo; na outra segura a espada impiedosa» (Heroides 11,3).
Com estas palavras, pois, Camões está a colocar-se na pele de:
1) uma mulher;
2) apanhada numa situação tão extrema da sua vida;
3) grávida do próprio irmão;
4) que acaba de receber do pai a espada para se suicidar.
Mas a questão complica-se ainda mais. Temos de ver agora que os versos do Canto VII d' Os Lusíadas retomam, por sua vez, os seguintes versos do Canto V: «numa mão a pena e noutra a lança».
Quem é aqui o alter-ego de Camões? Júlio César. Basta ir ver a estância 96 do Canto V. E não é difícil percebermos que Camões tem gosto em se identificar com a figura de Júlio César, pois também César era um autor de quem se dizia que salvara os seus escritos a nado.
No entanto, este mesmo Júlio César também era referido nas biografias antigas romanas, conhecidas na época de Camões, como homem de todas as mulheres e mulher de todos os homens.
Juntemos a isto o Canto III d' Os Lusíadas, em que Camões se compara a Orfeu, por sua vez explicitamente referido no Canto X das «Metamorfoses» de Ovídio como autor (em latim «auctor») de amores homossexuais.
Dizem que, nas sociedades repressivas como era o Portugal de Camões dominado pela Inquisição, quanto mais inteligentes os textos menos os censores os vão entender. Felizmente, o poema de Camões é tão inteligente que, em 2023, ainda estamos a tentar entendê-lo.
Cf. Traduzir Camões para o português atual? + Jorge de Sena e os 500 anos de Camões + Camões — uma poética de conjecturas + Cinco mistérios sobre Camões + «Se [Camões] durasse eternamente, ninguém mais escrevia» + Retratos de Camões + O ensino de Camões continua refém da sua “versão oficial” + O rei que amava os livros (e Camões) + Os factos e as lendas da vida e obra de Luís Vaz de Camões + A biografia de Camões, o poeta a quem foi diagnosticada ingratidão + Nova biografia de Camões mostra «o homem por detrás do mito»: «Foi um indivíduo do seu tempo. Genial no talento, mas enquadrado no seu tempo.» + O Jovem Camões em Coimbra + A Atribulada Vida de Luís de Camões + Camões, o Príncipe dos Poetas + Camões — uma poética de conjecturas + Cinco mistérios sobre Camões + «Se [Camões] durasse eternamente, ninguém mais escrevia» + Retratos de Camões + O ensino de Camões continua refém da sua “versão oficial” + O rei que amava os livros (e Camões) + A vida extraordinária do mais genial poeta português. Luís de Camões foi viajante, soldado, boémio.+ A biografia de Camões, o poeta a quem foi diagnosticada ingratidão + O Jovem Camões em Coimbra + A Atribulada Vida de Luís de Camões + Camões, o Príncipe dos Poetas + Luís de Camões, o poeta que cedo ganhou contornos de mito, acabou mesmo sem ter «um lençol com que se cobrir»? + «Camões não ficou agarrado ao seu tempo. O que ele diz ainda ecoa» + A vida atribulada de Luís de Camões
Apontamento do professor universitário, classicista, tradutor e escritor Frederico Lourenço, transcrito, com devida vénia da sua página no Facebook, com a data de 10 de junho de 2023.