«[...] a mirífica Inteligência Artificial foi sendo trocada por uma bem detestável Intromissão Artificial.»
Começo, não o ano, mas este texto, com uma declaração de princípios: nada me move contra a chamada A.I. ou Inteligência Artificial. Desde as pesquisas pioneiras de Alan Turing (1912-1954), ainda durante mas sobretudo após a II Guerra Mundial, que ela se tem desenvolvido de forma fascinante, alimentando em simultâneo ficções de todo o género – e quer a literatura quer o cinema têm sido férteis em explorar utopias e distopias que reservam às máquinas e aos seus “cérebros” um papel útil, dominante, perverso ou, na grande maioria dos casos, ameaçador.
O problema é outro. Comecemos pelo significado da palavra artificial. Dizem os dicionários que «é produto de arte ou indústria, desnatural», «que não revela naturalidade», «artificioso, ardiloso», «em que há dissimulação, contrafeito, fingido», «postiço», etc, explicando-se artifício como algo que «é produzido pela arte», «perfeição com que se faz alguma coisa», «habilidade, sagacidade, talento, mérito» ou, numa interpretação mais negativa, «simulação, fingimento, ardil, astúcia, dolo, manha». Ora, como nas línguas (na portuguesa ou na inglesa), esta duplicidade estende-se ao nosso quotidiano. Desde que apareceram uns sujeitos, alguns deles alegados génios e outros, em maior quantidade, verdadeiros cretinos, a apregoarem visões de unicórnios e a traduzirem toda a existência universal em algoritmos, que a mirífica Inteligência Artificial foi sendo trocada por uma bem detestável Intromissão Artificial.
Sem duvidar da utilidade de avaliar (quando necessário) a nossa relação com o mundo das máquinas, nos seus múltiplos parâmetros – e isso pode ser feito de forma seca e eficaz, sem rodriguinhos a fingir que «está ali uma pessoa» –, somos invadidos por idiotices a que apetece dar um berro. Como termos de ler no Gmail, ao despacharmos todo o correio, esta tolice em forma de exclamação: «Boa! Já leu todas as mensagens na sua caixa de entrada.» Devem achar reconfortante e “querido” para o utilizador, ou usuário, ou lá o que queiram chamar-lhe.
Outro exemplo: uma vulgar encomenda. Feita esta, chega a mensagem: «Boas notícias, Fulano! A tua encomenda foi aceite. O vendedor XPTO acabou de aceitar a tua encomenda e em breve vai proceder à sua expedição.» E, mais abaixo, isto: «Em breve você poderá se divertir...» O comprador, tratado por tu para fingir proximidade, passa num ápice a você. O caricato é que a encomenda pode ser um disco, um livro, uma ferramenta de jardinagem ou até mesmo um caixa de pregos, que a mensagem se mantém inalterável: «Em breve você poderá se divertir...» Não era melhor guardarem tais tolices para se entreterem nos intervalos das programações?
A maçada não acaba aqui. Se a encomenda foi mesmo uma ferramenta de jardinagem, o pobre comprador será bombardeado com a oferta de todo o tipo de maquinarias ou instrumentos de idêntica utilização ao longo de semanas ou meses. É o algoritmo, claro! Livre-se de querer comprar uma lâmpada, pois terá lâmpadas de todos os tamanhos e feitios a assombrarem-lhe a existência durante muito tempo. E a sinistra mensagem: «Em breve você poderá se divertir...» Mas há mais: chegada a lâmpada, ou o livro, ou o disco, ou a ferramenta, ainda há isto: «Uma vez que recebeu a sua encomenda XPTO, avalie, em menos de um minuto, o seu vendedor.» Porém, se quiser telefonar ao vendedor, ainda que seja para lhe dar os parabéns por tão bom produto (seja ele qual for), entra no surreal universo da Chamada Do Nunca: «Para serviços de reparações, marque X, para encomendas, marque Y, para pagamentos em atraso, marque Z, para falar com um assistente, marque…» Os algoritmos não atendem telefones, sabiam?
Bom, é este o universo das Siri, Google Assistant, Cortana, Amazon Alexa, entre outros, que foi inventado para fingir que nos facilita a vida. Por cortesia da tal Cortana, a Microsoft Viva agora resolveu aborrecer-nos com intromissões insistentes. Lê as nossas mensagens, copia o que julga útil e devolve-nos coisas como estas: «Ontem você disse: "Estarei contactável amanhã durante o dia"»; «Há 2 dias você disse, "Eu ligo-lhe, então, amanhã de manhã"»; «Há 4 dias você disse, "Falarei com Sicrano"». Além disso, julga mesmo que nos incentiva a viver: «Olá, fulano. Tenha uma ótima quinta-feira!»; «Olá, Fulano. Espero que tenha tido tempo para recarregar baterias»; «Precisa de tempo diário para as suas tarefas importantes? As Informações Viva estão aqui para ajudar. Agende automaticamente até 4 horas diárias para se concentrar.»
Ainda há, repetitiva, monocórdica, esta insuportável frase em irritantes balõezinhos: «Como posso ajudar?» Arrisco uma sugestão: talvez desaparecendo. Ajudava imenso e era um alívio.