« (...) Na forma tão portuguesa de encurtar a pronúncia das palavras, "querer com querer" virou primeiramente "qu’rer com qu’rer", depois "crer com crer", passando a "crê com crê" (...)»
Quem já não ouviu ou leu essas expressões do título? Nossa amada língua portuguesa tem modos curiosos de expressar o que sentimos, pensamos, dizemos, ocultamos, etc. Na busca do berço em que nasceram e do contexto em que se formaram tais expressões, às vezes a viagem é longa e demanda saberes de outros campos.
«Lé com lé, cré com cré» abrevia uma série de palavras, remontando a antiga oposição entre clérigos e leigos, segundo uma das explicações, que talvez não seja a mais correta, dando conta de recomendação para clérigos e leigos não se misturarem.
De tal explicação discorda João Ribeiro, filólogo e professor [brasileiro] do Colégio Pedro II, homem de vasta cultura, falecido em 1934, aos 74 anos. Em seu livro Frases Feitas: estudo conjetural de locuções, ditados e provérbios, diz ele que a origem mais provável é a recomendação de que os casais fossem formados pelo afeto mútuo, pela vontade e pelo querer.
Na forma tão portuguesa de encurtar a pronúncia das palavras, «querer com querer» virou primeiramente «qu’rer com qu’rer», depois «crer com crer», passando a «crê com crê», mas com a pronúncia já aberta por força da outra expressão, «clérigo com clérigo», resultando em «cré com cré».
É óbvio que a pessoa case com quem queira? Hoje é. Mas nem sempre foi assim. E o Estado português, formado em guerras travadas em seu próprio território e alicerçado na união com a Igreja, exigia que os nubentes fossem da mesma religião: «cré com cré». E surge nova explicação para o é (aberto) de credo e não o ê fechado de crer, a menos que nos primeiros séculos "crêr" fosse pronunciado “crér”, o que é improvável.
Misturando-se Estado e Igreja, vinha a determinação de que os noivos fossem da mesma lei, pois em Portugal vigiam três delas quando os casamentos foram disciplinados: a lei de Deus ou de Jesus Cristo; a lei de Mafoma ou Maomé; a lei cansada ou velha, de Moisés, correspondendo a três regimes jurídicos diferenciados para cristãos, mouros e judeus.
As Ordenações Afonsinas, aliás, determinam isso claramente: «Nenhum cristão tenha ajuntamento com nenhuma Moura ou Judia, nem alguma cristã com Judeu ou Mouro por serem gente de leis desvairadas.»
Já «com todos os FF (efes) e RR (erres)» designa uma crítica a quem, entre os séculos XIII e XVI, recorria aos pandectas, compilações jurídicas eruditas, identificadas nos manuscritos antigos por símbolos gregos que pareciam efes dobrados. Os mais pernósticos dobravam erres onde não eram necessários, como no começo das palavras, escrevendo: «rraposa, rrazão, rreceber, etc.»
O metro e a rima comparecem para facilitar a memorização. E é preciso ter muito cuidado porque «detrás da cruz está o diabo», «pela saia do vigário sobe o diabo ao campanário». Em Inglês: «Where God has his church, the devil will have his chapel» (Onde Deus tem sua igreja, o diabo terá sua capela).
O professor que citou a "pensadora” Valesca Popozuda numa prova, poderia recorrer a João Ribeiro, que não é bundão como os dois.
Artigo originalmente publicado no jornal digita brasileiro Primeira Página, no dia 11 de abril de 2014.