Há uma espécie de poética pandémica, um discurso levantado do vocabulário que subitamente se inventou ou colocou a uso, e que vai procurando dar sentido a tanto que começámos por não saber explicar. Metidos em cárcere, por mais privilegiado, expressões novas ou recuperadas procuram servir de clarões naquilo que tentamos dizer, não apenas para sabermos como nos sentimos mas, sobretudo, numa ansiosa estratégia para entender como ficaremos depois disto.
O vocabulário anda à procura do sentido, anda à procura do futuro, naturalmente que para nos educar acerca de como chegar ao desejável. Os nomes que damos aos assuntos deste cárcere é também como pensamos que sairemos dele.
Uma das razões para que os escritores se encontrem detidos no monotema do Mundo passa pela sensação desnatural de convocar outras dimensões da vida que não a sobrevivência elementar a um inimigo invisível e ubíquo. Qualquer esforço para apelar a causas e interesses que não se relacionem com o espectro da realidade atual acaba por parecer uma pretensão arrogante, até uma forma de inconsciência ou desrespeito para com quem batalha, padece, morre ou arrisca morrer.
Os escritores estão como oráculos a auscultar na página branca, a partir de seus obstinados diários da pandemia, o que a sorte, a ciência e a política ditam para amanhã. Contudo, o mais que se vai lendo são deriva e angústia. Os escritores encontrarão uma solução tão à sorte quanto o mais afincado cientista. A intuição aponta mas não é concreto esclarecimento. É uma inclinação. Tem mais de medo ou desejo do que de evidência puramente racional.
O esforço que nos está a competir a todos – nós, aqueles cujo contributo maior é o isolamento mais rigoroso possível – passa por uma revisão ética e pela higienização dos gestos e dos compromissos. E isso começa no cuidado com o discurso, e a força de não compactuar com as narrativas extremas.
Estamos num tempo em que os grandes jogadores apostam nos extremos. Pois é exatamente contra quem nos devemos atempar. Entre tudo quanto se procura desenhar, parasitando agora o susto da pandemia e as inevitáveis faltas que acontecerão, o mais grave do futuro será colaborarmos ingenuamente com quem dissemina já discursos de intolerância e ódio para ratificar a intolerância e o ódio e, naquela poética pandémica que define sobretudo como nos preparamos para uma nova normalidade, convencer as pessoas a quererem isso mesmo: a intolerância e o ódio.
Se puderem atentar no modo como falam do que nos acontece, escolham a paritária, livre, construção humana. Só assim fará sentido que mereçamos sequer voltar às ruas um dia.
Crónica originalmente publicada no Jornal de Notícias, de 10 de maio de 2020 (aqui transcrita com a devida vénia).