«O erro [nas respostas "Epistemólogo" e "O significado de 'obstáculo etimológico"], está bem de se ver, decorre de uma noção de epistemologia errada e difundida por alguma filosofia francesa, de que Bachelard é exemplo.(...)»
[Cf. N.E., em baixo.]
1. Epistemologia não é «filosofia da ciência»
Pretendia eu tirar uma dúvida [...] através do excelente sítio que é o Ciberdúvidas, e a dúvida prendia-se (e prende-se) com a diferença entre o emprego dos adjectivos epistemológico/a e epistémico/a. Eis que, porém, após pesquisar a fim de saber se já havia resposta e sem todavia ter encontrado resposta à minha dúvida, me deparei com estas respostas a respeito do que é epistemologia:
«A epistemologia é a ciência que trata do conhecimento científico. Reflete sobre o modo como se constrói a ciência, como progride… A noção de «obstáculo epistemológico» é defendida por Gaston Bachelard e significa que é através dele que se analisam as condições psicológicas do progresso científico», Maria João Matos, ["O significado de 'obstáculo epistemológico'"], 26 de Março, 2010.
E ainda:
«Em sentido lato, epistemologia é "gnosiologia ou teoria do conhecimento" e, em sentido restrito, "estudo crítico dos princípios, hipóteses e resultados das diversas ciências, com o fim de lhes determinar a origem lógica, o valor e o objectivo"» Carlos Marinheiro, "Epistemólogo", 16 de Outubro, 2009.
Eis o meu espanto em face das respostas, pois que epistemologia não significa nada do que consta nas respostas (tirante a parte em que, correctamente, se escreve: «epistemologia é "gnosiologia ou teoria do conhecimento"». Espanto porque, parte-se do princípio que, em nome do rigor, se deva consultar dicionários da especialidade a fim de se fornecer a melhor resposta e explicação possíveis. O que não ocorreu seguramente no caso em apreço. E por outro lado pressupõe-se que consultores com vastos conhecimentos científicos e académicos saibam o que significa epistemologia e qual o seu estudo, em virtude de ser uma das áreas fundamentais da filosofia, e grosso modo, do pensamento, porquanto indaga pela justificação última do conhecimento. Epistemologia é a mesma coisa que Teoria do Conhecimento. E a Filosofia da Ciência é Filosofia da Ciência, e não epistemologia, como consta nas respostas. Assim, eis o significado, em termos genéricos, de epistemologia, a partir dos melhores dicionários de filosofia traduzidos em Portugal:
«Epistemologia: (do grego episteme, “conhecimento”, e logos, “explicação”) o estudo da natureza do conhecimento e da justificação; especificamente, o estudo (a) das características da definição, (b) das condições essenciais das fontes, e (c) dos limites do conhecimento e da sua justificação. As três últimas categorias são representadas pelqa tradicional controvérsia filosófica sobre a análise do conhecimento e da sua justificação, as fontes do conhecimento e a sua justificação (por exemplo, racionalismo versus empirismo) e a viabilidade do ceticismo a respeito do conhecimento e da sua justificação», por Paul K. Moser, “Epistemologia”, in Dicionário de Filosofia de Cambridge, (org. Robert Audi), Paulus Editora, 2.a edição, 2011, p. 269.
«Epistemologia, s. Teoria do Conhecimento; o ramo da filosofia que investiga a natureza e a possibilidade do conhecimento. A epistemologia trata também do alcance e dos limites do conhecimento humano, e do modo como este é adquirido e retido. Investiga ainda algumas noções correlatas como, por exemplo, perceção, memória, prova, indício crença e certeza», por Alan White, “Epistemologia” in Dicionário e Filosofia, (Direção de Thomas Mautner), Edições 70, 2010, p. 255.
Ainda:
«Epistemologia (gr. Epistêmê, conhecimento) Teoria do Conhecimento. Algumas das suas questões centrais são: a origem do conhecimento; o lugar da experiência e da razão na génese do conhecimento; a relação entre o conhecimento e a certeza e entre o conhecimento e a impossibilidade de erro; a possibilidade do ceptiscismo universal; e as formas do conhecimento das novas conceptualizações do mundo” Simon Blackburn, Gradiva, 2.ª edição, 2007, p. 132.
Em livros de introdução à teoria do conhecimento (epistemologia):
Numa recente tradução de uma introdução à teoria do conhecimento, com o mesmo título, Introdução à Teoria do Conhecimento, Dan O’Brien, Gradiva, 2013, na parte 1 intitulada Teoria do Conhecimento, secção 1. Epistemologia, o autor começa assim:
«A teoria do conhecimento levanta certas questões muito amplas e profundas acerca dos sujeitos de conhecimento e do conhecimento em si. O que é conhecer? Como distinguir o conhecimento da mera crença? E será o conhecimento possível? A teoria do conhecimento é também designada epistemologia, a partir da palavra grega para conhecimento, episteme» p. 21.
Numa introdução por parte da professora portuguesa Maria Luísa Couto Soares (O que é o Conhecimento, introdução à epistemologia, Campo das Letras, 1.ª edição, 2004), creio que docente na Universidade Nova de Lisboa, diz assim: «Epistemologia: poderia definir-se, neste sentido como o estudo da justificação da crença ou opinião. “Quais as crenças que são justificadas ou fundamentadas e quais não o são?”, “Qual a diferença entre conhecer verdadeiramente e ter uma mera crença ou opinião verdadeira?”, “Qual a relação entre crer e conhecer?”, “Porque é que pensamos ou cremos que p?” – seriam perguntas centrais da epistemologia» p. 9.
Além dos dicionários e livros mencionados, existe em Portugal também outra tradução de uma introdução à epistemologia, por parte de um dos melhores epistemólogos contemporâneos: Epistemologia Contemporânea, Jonathan Dancy, Edições 70, 2002.
Podem encontrar-se vários artigos sobre epistemologia no sítio Critica na Rede, onde se encontram vários artigos sobre a mesma, inclusive este também de Jonathan Dancy, extraído do Oxford Companion to Philosophy, org. por Ted Honderich (Oxford: Oxford University Press, 1995, pp. 809-812); [e] ainda este texto de Michael Williams retirado de Problems of Knowledge: A Critical Introduction to Epistemology (Oxford: Oxford University Press, 2001), pp. 1-5.
No mesmo sítio, este ainda sobre o que é conhecimento, retirado do livro Core Questions in Philosophy, de Elliott Sober (Prentice Hall, 2008).
De todos os dicionários que consultei, e bem assim dos livros que citei (e já lidos) não há uma única referência que seja à epistemologia como se tratando de filosofia da ciência. Que a epistemologia também se ocupe do conhecimento científico, também pode ser verdade; outra diferente é afirmar que «A epistemologia é a ciência que trata do conhecimento científico. Reflete sobre o modo como se constrói a ciência, como progride …» A isto chama-se Filosofia da Ciência, e à semelhança da epistemologia, também existem introduções em Portugal e também se encontra muita informação no sítio Critica na Rede.
De modo que, não é por falta de recursos que se desconhece de que é que a epistemologia se ocupa.
O erro, está bem de se ver, decorre de uma noção de epistemologia errada e difundida por alguma filosofia francesa, de que Bachelard é exemplo. De resto, Bachelard tem um livro cujo título é Epistemologia, mas de que ele trata é de filosofia da ciência.
Não posso, pois, admitir que um sítio como o Ciberdúvidas propague o erro, à semelhança do fazem os dicionários de língua portuguesa, como consta no dicionário Houaiss, numa segunda acepção: «Epistemologia: Derivação: freqüentemente. estudo dos postulados, conclusões e métodos dos diferentes ramos do saber científico, ou das teorias e práticas em geral, avaliadas em sua validade cognitiva, ou descritas em suas trajetórias evolutivas, seus paradigmas estruturais ou suas relações com a sociedade e a história; teoria da ciência.»
Interpreto estas acepções como parte da arrogância que certos lexicógrafos e linguistas, entre outros, têm perante a filosofia, pois que, achando que sendo o que são e portanto tratando muitas vezes de problemas de filosofia (nomeadamente da linguagem) acham que não precisam de consultar especialistas de filosofia no momento de se dicionarizar um termo. A consequência é a definição de disparates como os acima mencionados, e como, por exemplo, a definição de filosofia no Houaiss (em comparação deixa-se mais abaixo a excelente definição do Diccionario de la Lengua Española, da Real Academia Española. Refira-se no entanto que a definição do Dicionário da Língua Portuguesa Contemporâneo, da Academia das Ciências de Lisboa (porquê de Lisboa e não de Portugal?) define igualmente filosofia de uma forma abstrusa, tal qual o Houaiss):
«substantivo feminino 1 Rubrica: filosofia. amor pela sabedoria, experimentado apenas pelo ser humano consciente de sua própria ignorância [Segundo autores clássicos, sentido original do termo, atribuído ao filósofo grego Pitágoras (sVI a.C.).] 2 Rubrica: filosofia. no platonismo, investigação da dimensão essencial e ontológica do mundo real, ultrapassando a mera opinião irrefletida do senso comum que se mantém cativa da realidade empírica e das aparências sensíveis. 3 Rubrica: filosofia. no âmbito das relações com o conhecimento científico, conjunto de princípios teóricos que fundamentam, avaliam e sintetizam a miríade de ciências particulares, tendo contribuído de forma direta e indispensável para o surgimento e/ou desenvolvimento de muitos destes ramos do saber. 4 Rubrica: filosofia. na dimensão metafísica, conjunto de especulações teóricas que compartilham com a religião a busca das verdades primeiras e incondicionadas, tais como as relativas à natureza de Deus, da alma e do universo, divergindo entretanto da fé por utilizar procedimentos argumentativos, lógicos e dedutivos. 5 Rubrica: filosofia. no âmbito da relação entre teoria e prática, pensamento inicialmente contemplativo, em que o ser humano busca compreender a si mesmo e a realidade circundante, e que irá determinar, em seguida, o seu caráter prescritivo ou prático, voltado para a ação concreta e suas conseqüências éticas, políticas ou psicológicas. 6 conjunto das obras filosóficas de um determinado autor; teoria, sistema, doutrina. Ex.: a f. de Platão. 7 pensamento ou obra escrita de conteúdo filosófico. Ex.: nesta manhã, embebeu-se com a f. de Platão. 8 conjunto de concepções filosóficas comuns a determinado grupo social; pensamento coletivo Ex.: f. francesa. 9 Derivação: por extensão de sentido (da acp. 5). conjunto de princípios para orientação na vida prática; razão, sabedoria. Ex.: pelos ditados e provérbios percebe-se muito da f. popular. 9.1 elevação ou serenidade de espírito, possibilitando a manutenção do ânimo e do humor frente às adversidades; sabedoria Ex.: encarar os fatos com f. 10 conjunto de idéias de (literato, teórico, letrista etc.). Ex.: <a f. de Freud> <a f. de Noel Rosa> n apositivo e substantivo feminino. Rubrica: artes gráficas. Diacronismo: antigo. 11 diz-se de ou caráter tipográfico de 11 pontos Didot.»
Definição do Diccionario de la Lengua Española, da Real Academia Española:
«Filosofia: conjunto de saberes que busca establecer, de manera racional, los princípios más generales que organizan y orientan el conocimento de la realidade, así como el sentido del obrar humano. Filosofia Analítica: corriente filosófica, de tradición anglosajona, que destaca la importancia del linguaje, de su verificabilidade e precisión en el análisis de las proposiociones filosóficas.»
[...]
2. Epistémico e epistemológico
[...] [D]eixo abaixo [a diferença entre epistémico e epistemológico] retirada de uma obra de introdução à teoria do conhecimento, e deixo igualmente mais uma definição retirada da mesma obra. [...] Espero que a despeito do meu esclarecimento, possam ou emendar os erros que constam nas respostas anteriores, a fim da verdade e de todos ficarmos esclarecidos, ou então que escrevam um texto no próprio sítio a respeito do que é a epistemologia, algo que sei que os senhores farão com relativa facilidade. Podem inclusive dissertar sobre essa confusão que existe em pensar que epistemologia se refere ao conhecimento cientifico (como referi, a epistemologia, grosso modo, ocupa-se do problema do conhecimento, das suas fontes e justificação, da possibilidade mesma do conhecimento – embora, como referi, tenha ligação com a filosofia da ciência, por exemplo, a metodologia –, ao passo que a filosofia da ciência se ocupa dos métodos e dos resultados (Popper, por exemplo), como as teorias são aceites, como a ciência progride (Kuhn), ou ainda quanto ao significado e conteúdos dos resultados científicos, inter alia). [...].
«Os filósofos chamam a teoria do conhecimento de epistemologia – dos antigos termos episteme (conhecimento) e logos (teoria ou explicação). Em sua caraterização mais ampla, a epistemologia é o estudo da natureza, das fontes e dos limites do conhecimento.»
«O adjetivo epistemológico se aplica a tudo quanto envolva tal estudo do conhecimento; significa “relativo à teoria do conhecimento”. O adjetivo epistémico é próximo dele e significa “relativo ao conhecimento”. É claro que o conhecimento não é idêntico a uma teoria do conhecimento; assim como a mente não é idêntica a uma teoria da mente, ou seja, a uma psicologia» Paulo K. Moser, Dwayne H. Mulder, J. D. Trout, A Teoria do Conhecimento, uma introdução temática, Martins Fontes. São Paulo, 2.ª edição, 2009, p. 6.
N. E. (atualizada) – Não há razão para retirar as respostas postas em causa, embora se justifique uma nota que dê conta de epistemologia tender hoje a ser equivalente a «teoria do conhecimento», seguindo uma conceptualização que é dominante na bibliografia em língua inglesa. As observações do consulente poderão ser também mais modalizadas, atendendo a que o termo epistemologia tem diferentes definições em diferentes contextos culturais e académicos. No contexto anglo-saxão é verdade que epistemologia corresponde a «teoria do conhecimento», e este é o significado que chega a dicionários gerais como o Oxford English Dictionary. Porém, outros países existem em que epistemologia teve, tem tido ou continua a ter um significado distinto – caso da investigação e discurso filosóficos de tradição francesa, na qual épistémologie se regista como sinónimo de «filosofia da ciência» (cf. Enciclopédia Larousse e Trésor de la Langue Française Informatisé). Ou seja, compreende-se que se queira tomar posição sobre esta divergência. Também se entende que se procure dar conta da perspetiva que se defende: como acontece nesta situação, o termo inglês epistemology com a definição que lhe é característica tende hoje a generalizar-se no ensino da filosofia nos currículos médios e superiores (cf. Dicionário Escolar de Filosofia, org. Aires de Almeida, Plátano Editora,2009). Mas não se pode ignorar que, noutros contextos de discussão nacionais e académicos, à palavra epistemologia pode associar-se uma conceptualização diferente da que a língua inglesa hoje difunde – falar dessa realidade histórica não é, portanto, «propagar um erro». Por último, observe-se que, na versão em linha do Diccionario de la Lengua Española, da Real Academia Española, se lê algo que converge com a definição da palavra francesa épistémologie: «epistemología Del gr. ἐπιστήμη epistḗmē 'conocimiento' y -logía.1. f. Fil. Teoría de los fundamentos y métodos del conocimiento científico» (tradução livre: «epistemologia Do grego ἐπιστήμη epistḗmē 'conhecimento' y -logía. 1. f. Filosofia. Teoria dos fundamentos e métodos do conhecimento científico»).