A propósito da execução de reféns ocidentais pelo Estado Islâmico, Wilton Fonseca dedica uma crónica (publicada no dia 2 de outubro de 2014 no jornal i), ao papel decisivo que a linguística aplicada e, designadamente, a linguística forense têm hoje na investigação de questões criminais.
Antes de degolar a sua primeira vítima, ao gravar a sua mensagem de ódio para o mundo, o psicopata que os jornalistas baptizaram com o nome de Jihadi John pressentiu que estava a pôr a sua própria cabeça a prémio. Pressentimento confirmado. No segundo vídeo tentou disfarçar a voz, mas já dissera o suficiente para que americanos e britânicos descobrissem quem ele é. Ou já não é.
A voz identificou o algoz.
A linguística aplicada dedica-se há anos a identificar as pessoas por meio das marcas que elas introduzem nos seus discursos. É auxiliada nesta tarefa pela linguística forense, que tem, entre outros, o objectivo de produzir evidência linguística em questões legais, pela fonética forense, que determina as distorções que uma voz pode sofrer, de acordo com o instrumento tecnológico utilizado na sua transmissão (telefone celular, telefone fixo, vídeo...) e pela dialectologia forense, que pode determinar a naturalidade de uma pessoa, o seu grau de educação, o local que habita ou habitou, o seu grupo social ou profissional. O conjunto de informações obtido com o concurso de todas as especialidades torna possível identificar o idiolecto do indivíduo em causa - algo tão próprio e exclusivo como as impressões digitais, o ADN ou uma fotografia.
Muito antes de qualquer acção militar, a linguística tramou Jihad John. Um jornal londrino já publicou a sua biografia, descreveu a sua família, falou com os vizinhos. Degolou-o, para todos os efeitos. Adeus, John, morto aos 30 anos.
N. E. – O verbo degolar é ambíguo. Embora os dicionários apenas lhe atribuam o sentido de «cortar o pescoço», acontece geralmente que desta definição não decorre necessariamente que a cabeça seja decepada, pelo que geralmente pode entender-se degolar como o mesmo que «fazer um corte profundo na garganta». É o que sugere o Dicionário dos Sinónimos Poético e de Epítetos (Lello e Irmão - Editores), de J. I. Roquete e José da Fonseca: «Decapitar, degolar Ambos estes verbos indicam a ação de cortar a cabeça com a diferença que decapitar é cortá-la por sentença e autoridade da justiça, e degolar é cortar a garganta ou o pescoço e qualquer animal e por qualquer motivo que seja. – Degolam-se reses no degoladouro; decapitaram-se os nobres no cadafalso. – No sentido figurado diz-se que se degolam as heresias, os vícios, mas não se pode dizer que se decapitam.» Assinale-se que esta fonte remonta a 1885, o que explica que a distinção não se afigura totalmente válida na atualidade; no entanto, é suficiente útil para confirmar que degolar tanto pode significar «cortar a garganta» como «separar a cabeça do tronco», indo assim ao encontro do substantivo regressivo degola, que ainda tem, entre outros, dois significados contrastantes, embora muito próximos, segundo o Dicionário Houaiss: ««[degola] ato ou efeito de degolar(-se); degolação, degolamento, degoladura. 1 corte, incisão no pescoço 2 decepamento da cabeça; decapitação [...].» Não obstante, há registo de ocorrências de degolar apenas interpretáveis com o significado de «decepar a cabeça»; por exemplo, Eça de Queirós usava o verbo degolar como sinónimo de decapitar: «E Herodes mandou então degolar o nosso bom São João!» (A Relíquia, in Corpus do Português).