Não é fácil reproduzir e recriar a fala autêntica na literatura, no teatro, na televisão ou no cinema. O escritor e professor universitário Fernando Venâncio dá exemplos do que se não deve fazer quando se escrevem diálogos ficcionais, num texto publicado na coluna "Língua movediça" da revista Ler (janeiro de 2014).
Ela abriu a boca e, tentando em vão esconder o ciúme que já lhe acudia ao rosto, disse: «Gostas de Teresa, não é?». Pura mentira. Nunca jamais boca portuguesa produziu semelhante frase.
Eis, de facto, um dos problemas dos ficcionistas: porem pessoas a falar como se de gente verdadeira se tratasse. No caso acima, seja lembrado que, sempre que, numa conversa, referimos alguém pelo nome, o fazemos com um artigo. «Gostas da Teresa, não é?» Foi assim que ela disse.
Escrever diálogos é uma arte. Isto vale para a literatura, e vale para o teatro, a televisão, o cinema. Acontece que alguns autores se sentem, com demasiada convicção, uns enviados do Olimpo. Daí o porem-se, e porem-nos, a discursar como deuses.
O resultado é assaltarem-nos personagens dizendo «Soube que ele casara um ano antes», ou «Entre cambraia e tafetá, escolhi este», ou «Vimos o padre na capela, o qual nos saudou». Se já em passagem descritiva tais giros são pirosos, como relato de falas soam insuportáveis.
A conversação rege-se por uma gramática com tiques próprios, aqui mais compactos, ali mais loquazes, do que os da prosa de secretaria. A escrita funcionária ignora esses tiques, como ignora o relevo de uma redundância («Ele deu-ma dada»), a verdade de um anacoluto («Se chover, está aqui um guarda-chuva»), a benesse de um mal-entendido («Chama-se gárgula, ou desaguadouro» «Como?» «Deixa...»).
Não sei se os cursos de escrita criativa ensinam estas coisas. Ignoro também se, nas editoras, os revisores atentam na agilidade do diálogo, e o corrigem quando impróprio. Verdade é que, em obra de ficção, as vozes que correm fluidas fazem desculpar algum desdouro da trama, alguma quebra no feitio.
Saber reproduzir a fala autêntica pressupõe um ouvido atento e curioso, e também, sejamos sinceros, algum desdém por um idioma demasiadamente bem penteado. Mas a suprema arte estará sempre, claro, no cuidadoso estilizar de todo esse desleixo.
Crónica publicada na coluna "Língua movediça", no número de janeiro de 2014 da revista Ler. Manteve-se a ortografia usada pelo autor.