Carlos Reis
Sobre a aplicação do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa em Portugal, Carlos Reis, professor catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, emitiu em 3/3/2013 o parecer que aqui se disponibiliza. Assinale-se que, no âmbito da audição n.º 1 GT-AAAO-XII, realizada, na Comissão de Educação Ciência e Cultura da Assembleia da República, pelo Grupo de Trabalho para Acompanhamento do Acordo Ortográfico, podem também ser consultados documentos em linha sobre este assunto, designadamente os respeitantes à intervenção de Carlos Reis em 28/2/2013.
1. O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (AO), firmado em 1990 pelos então sete países de língua oficial portuguesa e mais tarde adotado por Timor-Leste, traduz um propósito político comum: conferir ao idioma a unidade possível (mas não uma unicidade sempre inatingível), procurando esbater as diferenças ortográficas que atingem o português, por força de um processo evolutivo e de uma tendência para a desagregação que não cabe agora analisar. Tal propósito fixa um contexto bem claro para a função a exercer pelo AO, a exemplo do que aconteceu e acontece noutras grandes línguas de cultura: o da necessidade de afirmar a língua portuguesa (LP) como grande idioma com projeção internacional, afirmação que será efetiva no amplo quadro de uma política de língua solidariamente perfilhada pelos oito países de língua oficial portuguesa; é isso que claramente se afirma no parágrafo de abertura do texto do AO: trata-se de “um passo importante para a defesa da unidade essencial da língua portuguesa e para o seu prestígio internacional”. Quaisquer outros intuitos, pressuposições ou preconceitos caem fora do que aqui se diz e não são pertinentes para a presente discussão.
2. A vigência do AO não põe em causa o respeito pelas diferenças relativas reveladas pela prática linguística e pelos cenários idiomáticos (nalguns casos muito complexos) existentes nos diferentes países de língua oficial portuguesa. Mas desde já importa sublinhar a relevância de um efeito adquirido pelo AO: a LP já não é, como até há pouco se verificava, uma língua com duas variantes oficiais, a portuguesa e a brasileira. Esta era uma situação que muito afetava a situação da LP na comunidade internacional, seja no ensino, seja nos negócios, seja nas instituições internacionais, seja em muitas outras instâncias. Mais: a LP era a única grande língua de cultura que reconhecia expressamente duas variantes oficiais, o que a menorizava no confronto com outras línguas, uma vez que as oscilações que nalgumas delas se observam não têm o reconhecimento de variantes oficiais.
Por outro lado, cabe lembrar o seguinte: a existência de um AO coloca-se agora em termos muito diversos do que quando apenas dois países, Portugal e o Brasil, tinham a LP com idioma oficial. O facto de serem presentemente oito os países em que é assim estimula o acionamento de instrumentos de consolidação de uma comunidade que tem hoje tradução jurídico-política na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa; se, nesse plano, o idioma fosse descuidado e se não fossem elaborados instrumentos de coesão (como é o caso do AO), seria seriamente prejudicado o sentido e o projeto comunitário que a CPLP representa, sempre com respeito pela singularidade e pela identidade de cada um dos Estados que a integram. Um tal descuido afetaria gravemente aquele que é um importante fator simbólico e funcional de coesão: a língua que histórica, política eculturalmente tem assumido (e deve continuar a assumir) um destaque considerável no projeto político da CPLP.
3. A ortografia constitui um dos componentes (talvez o único componente) em que é possível intervir ponderadamente para, ao mesmo tempo, acompanhar a evolução da língua e atenuar as derivas que essa evolução vai induzindo. A evolução em causa, no plano ortográfico, fica bem evidente quando, por exemplo, se compara um texto dos nossos dias com um texto do século XVI ou até do século XIX: não escrevemos hoje (do ponto de vista da grafia, é claro) como Camões ou Camilo Castelo Branco escreviam; e contudo, a atualização ortográfica dos seus textos, até ao ponto em que isso não interfere na articulação fonológica, não empalidece a qualidade literária e o significado cultural daqueles textos.
É sabido, entretanto, que a regulação da ortografia provoca estranheza e mesmo incómodo. Trata-se de um elemento com forte representação visual, muito ligado à fase de aprendizagem do idioma e de interiorização das rotinas de escrita, o que induz atitudes emotivas que o tempo, entretanto e com muita celeridade, trata de eliminar. Quem se lembra hoje de que, até ao início dos anos 70 do século XX, escrevíamos “amàvelmente” e não “amavelmente”, “Zèzinho” e não “Zezinho”? E contudo, quando essas (e outras) alterações foram aprovadas, instalou-se a tal estranheza. Mais: aquelas alterações nem sequer provocaram as mudanças de pronúncia que alguns temem hoje em dia; continuámos a articular com as vogais bem abertas aqueles e muitos outros vocábulos em situação similar.
No respeitante a reações adversas, passou-se o mesmo e de forma mais expressiva com a Reforma Ortográfica de 1911 (muito drástica, por sinal) e com todas as alterações ortográficas que, de forma mais ou menos profunda, vieram depois daquela Reforma. E todavia, não colhe o argumento de que se não deve regular a ortografia (ou, em geral, a língua) e de que se deve deixar correr sem obstáculos a sua evolução natural. Se assim fosse, perderiam qualquer sentido as gramáticas, os dicionários ou os prontuários ortográficos; a sua existência, associada ao ensino regido por programas que o Estado aprova, confirma que a língua é um sistema comunicativo complexo que, sendo aberto a derrogações que vão sendo introduzidas pela prática corrente e pela criação literária, não passa sem regulação. Sem ela, a língua desagregar-se-ia e a comunicação tornar-se-ia difícil ou até inviável. O AO constitui apenas um instrumento de regulação, perfilhado por um conjunto de países que adotam o mesmo idioma como língua oficial; perturba decerto rotinas pessoais, mas não afeta, conforme o passado mostra, nem a dignidade do idioma, nem a sintaxe, nem o léxico. De uma vez por todas: a intervenção incide na escrita e não mais do que isso.
4. As dificuldades inerentes à entrada em vigor do AO são naturais, compreensíveis e superáveis com o hábito, conforme já está acontecer. Pode argumentar-se que o AO contém deficiências e incongruências. É certo que algumas das opções que ele exibe serão discutíveis, mas também é certa outra coisa: não existe, nem nunca existiu um idioma sem incongruências internas, na ortografia como noutros planos. E isto torna-se evidente em incontáveis exemplos que podem ser aduzidos, relativamente ao que era a nossa ortografia, antes do AO.
Não é possível trazer aqui aqueles exemplos, a não ser de forma pontual. Alguns casos: escrevíamos “ato” (verbo) e “acto” (substantivo); quando se afirma que o “c” não pronunciado impõe a abertura da vogal, não se diz que em “actuar” ela não é aberta. Duplas grafias também existiam (e continuam a existir) em abundância (“covarde” e “cobarde”, “touro” e “toiro”, etc.), nalguns casos de forma acentuada (“ervanário” e “herbanário”). As homografias já ocorriam antes do AO, sem perturbarem a pronúncia correta nem o sentido das palavras: distinguimos “gelo” (substantivo, com a vogal fechada) de “gelo” (verbo, com a vogal aberta), “colher” (substantivo, aberto) de “colher” (verbo, fechado). E que sentido faziam as consoantes não pronunciadas em “óptimo”, “eléctrico” ou “ecléctico”, se lá estava (e está) um acento agudo bem visível? Tudo isto antes do AO, quando se sabia que, nos casos de ambiguidade, o contexto ajudava a desambiguizar. É o que agora se passa.
Num outro plano, importa dizer que, ao contrário do que tem sido afirmado em explanações incompletas e suportadas por “contagens” defeituosas, com o AO não aumentam os casos de dupla grafia. Os novos casos são largamente compensados pelos muitos que desaparecem, quando se comparam as grafias usadas no Brasil e em Portugal (e também noutros países de língua oficial portuguesa). Para não entrar em pormenores fastidiosos, remeto para o artigo de Jorge Candeias, “Para mal de alguns, os números não mentem” (jornal Público, de 25 de fevereiro passado) e para o sítio eletrónico [Lâmpada Mágica].
Isto significa que muitos dos problemas levantados pelo AO – de novo: sem deixar de se notar que ele não é perfeito – são artificialmente empolados por argumentos emocionais e às vezes por interpretações fundamentalistas, exclusivistas (do género: a língua é nossa, não dos brasileiros) e mesmo desinformadas. Já foi possível encontrar comentários jocosos ou escandalizados, vindos de personalidades tidas por influentes, em órgãos de comunicação social com larga audiência, a propósito da palavra “facto” e da sua alegada mudança para “fato”, à brasileira; foi o que lemos e ouvimos há não muito tempo no semanário Expresso (que curiosamente já segue o AO…) e num noticiário da RTP1 (que também cumpre o AO…). Parece estranho (e é) ter que repetir: com o AO, “facto” continuará a escrever-se daquele modo, pela simples razão de que daquele modo se pronuncia.
Esta é, aliás, uma das vantagens inquestionáveis do AO, com efeitos inegáveis no plano da aprendizagem da escrita: a sua orientação vai no sentido de privilegiar uma grafia tendencialmente fonológica, isto é, escreve-se o que se pronuncia, ressalvada, evidentemente, a convencionalidade relativa que sempre existe na passagem da fala para a escrita. Se existem alunos que se queixam do AO, significa isso uma de duas coisas (ou talvez até as duas): que estão mal informados por professores que desrespeitam normativos que o ensino oficial a que estão vinculados estabeleceu (já se pensou qual seria o resultado, se os professores, além disso, pusessem em causa os programas das disciplinas?) ou que esses alunos não estão ainda rotinados nos hábitos de escrita que o AO determina.
Não há como negar que alguns dos problemas encontrados pela aplicação do AO (resistências, tentativas de retrocesso, argumentações enviesadas) decorrem da tibieza com que, salvo raras exceções, este assunto foi tratado em Portugal por sucessivos Governos, desde a aprovação do referido AO. Sendo certo que esta é uma matéria melindrosa e controversa, preferiu-se adiar, amenizar e contemporizar, em vez de se explicar claramente, pelas vias e com os instrumentos adequados (ferramentas escolares, vocabulários ortográficos, comunicação social, internet, etc.), as vantagens do AO (as que acima foram mencionadas e outras mais), bem como as obrigações decorrentes de um compromisso livremente assumido pelo Estado português, em harmonia com outros Estados.
5. Neste momento, sobrevivendo alguma oposição compreensível, a adoção do AO está em curso acelerado, apesar de não ter terminado o período estabelecido para a transição (veja-se o sítio eletrónico [em Português Grande]). O Estado português adotou, em várias instâncias decisivas (jornal oficial, documentos oficiais, sítios eletrónicos governamentais e de institutos públicos, programas escolares, etc.), o AO; o mesmo fizeram inúmeras instituições públicas e privadas, nos seus sítios eletrónicos, comunicações internas e publicações. Está disponível software de composição de texto que incorpora as alterações do AO. Na sua esmagadora maioria, os meios de comunicação social usam já a grafia do AO: dos dez jornais e revistas portugueses com maior circulação, oito adotaram o AO (os dois que o não fizeram estão em oitavo e nono lugar nos índices de circulação); as três estações de televisão ditas generalistas adotaram o AO e, com uma única exceção, fizeram-no também todas as de difusão por cabo; os livros escolares começaram já a ser editados segundo o AO, uma vez que no Ensino Básico entraram em vigor programas de Português que determinam o uso da grafia do AO. Por fim: existem já vocabulários ortográficos em Portugal e no Brasil, da autoria das Academias (respetivamente, das Ciências e Brasileira de Letras), bem como do ILTEC (Instituto de Linguística Teórica e Computacional); e são diversas as ferramentas de conversão eletrónica gratuitas que se encontram disponíveis. Estão, enfim, criadas as condições para a composição do Vocabulário Ortográfico Comum da LP, tendo sido já tomadas iniciativas importantes nesse sentido, designadamente a criação de um conselho consultivo; acrescente-se que o avanço deste projeto é decisivo para resolver muitas da dúvidas e ambiguidades suscitadas pelo AO.
6. Em meu entender, falta ainda que, no plano político, seja assumida de forma clara e inequívoca que o AO corresponde a um compromisso livremente assumido por oito Estados e que, como tal, ele deve ser cumprido. E falta acrescentar que esse cumprimento traduz uma vontade política de dotar o espaço da LP de um instrumento de coesão do idioma (na medida e até ao ponto em que tal é possível), instrumento que tem esse alcance e nenhum outro, sempre no quadro de uma política de língua que se não reduz, evidentemente, à questão da ortografia.
A par disso, parece importante sublinhar que, com a legitimidade que todas as opiniões têm, muitas delas assentam em atitudes emocionais e em argumentos não raro contaminados por uma conceção da LP como património exclusivo de Portugal e dos portugueses. Não é assim. O futuro da LP, na cena internacional como no concerto dos países de língua oficial portuguesa, decide-se com a intervenção cooperativa de todos os Estados; a todos deve ser reconhecido o direito de cuidarem da LP, naturalmente com os recursos e com as instituições de que dispõem e que, como é sabido, são muito desiguais de país para país, por razões tão óbvias que nem vale a pena invocá-las. Por fim, importa levar a cabo um trabalho diplomático discreto e persistente, de preferência em articulação com outros países, a fim de se conseguir que aquele que ainda não ratificou o AO (Angola) venha a fazê-lo, conforme será inevitável; alguns sinais importantes já foram dados nesse sentido, de acordo com notícias oriundas da agência Angop, designadamente na edição eletrónica do Expresso, de 28 de março de 2012.
A par do que fica dito, deve pensar-se na conveniência de serem introduzidos reajustamentos de pormenor em aspetos do AO que disso carecem. Trata-se de um trabalho que depende de boa e desapaixonada informação acerca do que está a acontecer no terreno, a levar a cabo com a participação de especialistas. Em meu entender, não é curial que esse trabalho tenha lugar enquanto estiverem a transcorrer os períodos de transição até à vigência obrigatória do AO.
7. Três observações finais. Primeira: ao contrário do que é dito, Moçambique não se encontra em posição de resistência ao AO, até porque (como Angola fez) o subscreveu. Em junho do ano passado, o Conselho de Ministros daquele país ratificou o AO, faltando apenas idêntica decisão por parte da assembleia legislativa. Segunda: diferentemente do que foi propalado, o Brasil não “suspendeu” o AO; uma decisão recente do Governo brasileiro prolongou por mais algum tempo o período de transição, o que é coisa bem diferente; deste modo, aquele período de transição terminará em data próxima do nosso. De resto, qualquer observador in loco pode verificar que, no Brasil, a adoção do AO está amplamente consumada, sem oposições nem discrepâncias significativas. Última observação: esta é uma matéria difícil e problemática, envolvendo o Estado português, os seus compromissos e os seus interesses estratégicos, a longo prazo. Seria inaceitável e contraproducente que ela fosse tratada (como às vezes tem sido) numa ótica estreitamente partidária, ao sabor dos interesses conjunturais dos Governos ou até condicionada pela ânsia de protagonismo de quem entende a rejeição do AO como causa pessoal. Para além de responsabilizar o Estado português, a questão do AO, no contexto alargado da política de língua, interessa à comunidade plural dos países de língua oficial portuguesa e ao futuro do nosso idioma, nessa cena comunitária e, para além dela, na cena internacional. Não o reconhecer será um erro porventura irrecuperável.
Coimbra, 3 de março de 2013
Carlos Reis