«A sugestão – escreve o coordenador da equipa que elaborou o novo Programa de Português do Ensino Básico em Portugal –, não sendo por certo politicamente correta, é simples: que se deixe para segundo e subalterno plano a parafernália das estratégias, das planificações, das competências e das metas e que se avalie o professor de Português sobretudo em função de uma singela pergunta que é paráfrase daquela que um dia alguém endereçou ao jovem Eça: sabe ele o seu português?» In jornal Público de 12 de Agosto de 2011.
(…) Vários artigos de opinião (…), de uma forma ou outra, [têm incidido] sobre o ensino do Português e sobre aspetos correlatos deste tema, a saber: a qualidade do sistema educativo, a inserção curricular do Português, o lugar dos textos literários no ensino da língua, os novos Programas de Português do Ensino Básico (PPEB), a responsabilidade de associações profissionais (como a Associação de Professores de Português), etc. Tudo isto e ainda o confronto de instrumentos de trabalho e de orientações pedagógicas em vigor, com intervenções do ministro Nuno Crato, antes de exercer as atuais funções.
Duas observações necessárias: no que toca à questão da presença da literatura nos programas e no ensino do Português, subscrevo quase tudo o que foi dito pela minha colega Helena Buescu, em texto publicado a 31 de julho passado. Segunda: tendo coordenado a elaboração dos novos PPEB, não trago aqui a discussão desse processo nem dos seus resultados. Essa discussão foi feita em tempo próprio de forma aberta e está encerrada. Agora trata-se de passar à prática, coisa que não exclui reajustamentos ou ações de formação, como aliás tem sido feito.
A verdade, entretanto, é que colhi daquele trabalho uma experiência muito rica, com a ajuda de pessoas competentes e experientes. A par disso, pude conhecer melhor excessos e disfunções que dramaticamente têm afetado o ensino do Português. E que, para tudo dizer, impediram (porque é considerável o peso de uma doxa pedagógica vigente há três décadas) que se fosse mais longe do que eu desejava, na revisão de métodos e conteúdos que têm atravancado o caminho que leva àquilo que sintetizo assim: formar cidadãos que bem escrevam, bem falem e bem leiam, conscientes da relevância cultural do idioma e capazes de fruir os textos maiores que nele foram escritos. Tudo o mais está compreendido neste propósito abrangente; tudo aquilo que o prejudique ou negue corresponde à falência do sistema de ensino numa sociedade democrática.
Vou ser mais claro.
O ensino do Português tem estado (e certamente vai estar ainda por algum tempo) contaminado por um jargão conceptual quase esotérico. Não falo aqui da TLEBS nem do Dicionário Terminológico; defendo, sem entrar na discussão do caso, a pertinência pedagógica de terminologias e não vejo por que razão o Português, neste aspeto, há de ser diferente da Matemática, da Física ou da Biologia. Falo do desenvolvimento didático dos conteúdos de um programa, qualquer que ele seja, desenvolvimento que parece não poder dispensar descritores e tabelas de desempenho, referenciais e competências várias, indicadores e metas, planificações e também as famosas "estratégias", invocadas estas por tudo e por nada, quase sempre sem se perceber o exigente significado do vocábulo. Não ponho em causa a honestidade de quem usa e abusa daquelas noções e dela tenho testemunhos inequívocos. Tão-pouco sou dos que atribuem aos professores (ou apenas a eles) os defeitos de prolixas formulações didáticas absortas no que é procedimental e valorizando ad nauseam o como fazer em detrimento daquilo que deve ser feito. Pude verificar, todavia, que, estando fundamente entranhada esta perversa lógica de poder, ela só poderá ser desmantelada com esforço árduo e custos altos.
Quando isso acontecer, talvez se atente na relevância de componentes tão decisivos como os professores e a sua formação - uma outra formação, aliviada do peso atrofiante das ciências da educação, que disso temos que sobre.
Com o devido respeito, formulo uma pergunta que talvez pareça provocatória: os professores de Português sabem português com a profundidade que se exige a quem ensina? Estudaram devidamente o idioma, a sua história, os seus cambiantes socioletais e as suas variações geolinguísticas? Dominam a gramática da língua e a sua terminologia? Conhecem os escritores que têm feito do português um grande idioma de cultura? Leram Sá de Miranda, Herculano, Camilo, Cesário Verde, Machado de Assis, Carlos de Oliveira, Agustina ou Luandino Vieira? Distinguem-nos dos pífios escritores da moda "consagrados" em livros escolares pouco criteriosos? Dispõem de instrumentos e de disposição para indagações linguísticas e literárias que vão além das banais ferramentas da Internet?
As perguntas são embaraçosas, mas têm que ser feitas, mesmo sabendo-se que há exceções ao que temo seja a regra.
Bem sei: faltam as condições, o tempo e os recursos para tanto. Em parte, é verdade e o poder político deve estar consciente disso. Mas em parte também (em grandíssima parte) o problema tem uma origem, que é o modo como têm sido formados os professores de Português - e certamente os de outras disciplinas. Atenção: nesta triste história, eles são sobretudo vítimas e não tanto responsáveis. Estes encontram-se no pessoal político que, sem remorso que se perceba, determinou a criação de uma rede de ensino superior em função de pressões de circunstância, com dois subsistemas que competem entre si em vez de se complementarem, onde lecionam docentes não raro doutorados à pressão, com escolas de formação de professores colonizadas pelas ciências da educação e com universidades que sem pudor se deixaram "politecnizar".
Pelo que se sabe, vem aí uma reformulação da avaliação de professores. É esta uma excelente oportunidade para se começar a separar o trigo do joio e a dar sinais claríssimos às escolas e às faculdades de onde saem os professores de Português. E a sugestão, não sendo por certo politicamente correta, é simples: que se deixe para segundo e subalterno plano a parafernália das estratégias, das planificações, das competências e das metas e que se avalie o professor de Português sobretudo em função de uma singela pergunta que é paráfrase daquela que um dia alguém endereçou ao jovem Eça: sabe ele o seu português? Se a resposta for afirmativa, o resto virá por acréscimo.