Um dos poemas de A Matéria do Poema, de Nuno Júdice, que joga com o valor e a conotação de algumas palavras da língua portuguesa (rapariga, jovem e moça) em três realidades lusófonas (em Portugal, no Brasil e em África), alertando para os incómodos (e as inconveniências) que o uso inadvertido de qualquer um dos três termos pode causar.
rapariga: s.f., fem. de rapaz: mulher nova; moça; menina; (Brasil), meretriz.
no café, em frente da chávena de café, enquanto
alisa os cabelos com a mão. Mas não posso escrever este
poema sobre essa rapariga porque, no brasil, a palavra
rapariga não quer dizer o que ela diz em portugal. Então,
terei de escrever a mulher nova do café, a jovem do café,
a menina do café, para que a reputação da pobre rapariga
que alisa os cabelos com a mão, num café de lisboa, não
fique estragada para sempre quando este poema atravessar o
atlântico para desembarcar no rio de janeiro. E isto tudo
sem pensar em áfrica, porque aí lá terei
de escrever sobre a moça do café, para
evitar o tom demasiado continental da rapariga, que é
uma palavra que já me está a pôr com dores
de cabeça até porque, no fundo, a única coisa que eu queria
era escrever um poema sobre a rapariga do
café. A solução, então, é mudar de café, e limitar-me a
escrever um poema sobre aquele café onde nenhuma rapariga se
pode sentar à mesa porque só servem café ao balcão.
Matéria do Poema, Lisboa, Edições D. Quixote, 2008.