Um texto da autora de Romanceiro da Inconfidência, quando a reforma ortográfica de 1943 a levou a ter de trocar o (até aí) tradicional Meirelles pelo novo Meireles…
Muita gente me pergunta se deixei de escrever o meu sobrenome com letra dobrada devido à reforma ortográfica; e quando estou com preguiça de explicar, digo que sim. Mas hoje tomo coragem, abalanço-me a confessar a verdade, que talvez não interesse senão aos meus possíveis herdeiros.
A verdade nunca é simples, como se imagina. E, em primeiro lugar, devo dizer que o meu sobrenome simplificado só vale na literatura. Nos documentos oficiais prevalece a forma antiga, e eu por mim gosto tanto da tradição, que não me importava nada carregar um ípsilon, um th, todas as atrapalhações possíveis que enrugam e encarquilham um idioma.
Por outro lado, as reformas ortográficas são sempre tão arrevesadas, que já perdi as esperanças de estar algum dia completamente em condições de escrever sem erros, descansando assim no tipógrafo e no revisor, que são os grandes responsáveis pelas nossas faltas e pelas nossas glórias. Não foi, portanto, por afeição às reformas que sacrifiquei uma letra do meu nome. A história é mais inverossímil.
Todos na vida atravessamos certas crises. Dever-se-ia mesmo escrever sobre a gênese, desenvolvimento, apogeu e fim das crises. Se uma pessoa está sem emprego, o natural é que se empregue. Se está doente, o natural é que morra ou se cure. Mas o fenômeno da crise é importante precisamente por ser o contrário do natural. De modo que, se a pessoa está desempregada, não há maneira de arranjar emprego, e, se está doente, não há maneira de se curar, etc. […]
Assim, descendo de observação em observação, e consultando algum conhecido — e os nossos conhecidos sempre sabem essas coisas ocultas e, se não nos ajudam com as suas luzes, é pela timidez em não acreditarem o momento propício — passei a analisar o meu nome.
Esqueci-me de dizer que estava disposta a todos os despojamentos. Se a culpa fosse de algum mau sentimento, de alguma ação malvada, eu me castigaria energicamente. E até, para me estimular, recordava o exemplo daquela senhora americana que arrancou um olho e cortou a mão, convencida de que esses dois fragmentos do seu corpo estavam estragando a sua alma.Foi nessa ocasião que me explicaram o valor cabalístico das letras, e a razão por que muitas pessoas mudam de nome, trocando aquele que lhes foi dado por outro em que haja uma combinação de valores mais favorável aos seus destinos.
Todos os conhecimentos têm uma profunda sedução. Quem conseguisse saber tudo ficava igual a Deus. Por isso é que muitos são de opinião que se saiba o menos possível, para não se ter a mesma sorte que Eva, que logo no princípio do mundo estragou o Paraíso com o pecado do saber.
Digo isto porque um tratado de biologia me atrai com a mesma força que um volume de ciências ocultas, e os números e as letras me parecem tão organizados, tão sensíveis, tão vivos, tão poderosos, enfim, como um animal, uma planta, um átomo.
Naturalmente, desmontei o meu nome, peça por peça, calculei, pesei, refleti, devo ter chegado a alguma conclusão de que já não me lembro, e não tenho a impressão de que os meus cálculos fossem assim desfavoráveis. Mas, pelo sim, pelo não, como havia uma letra disponível, achei melhor sacrificar essa letra.
Há os que sacrificam os filhos, os carneiros, as aves, e há os que sacrificam o seu coração. Sacrifiquei o meu. Porque eu gostava de todas as minhas letras, fervorosamente. Ter de cortar uma não foi assim coisa tão fácil como as reformas ortográficas ordenam. Uma letra é um signo, é uma coisa misteriosa que as gerações vêm carregando consigo, modificando de longe em longe, por mão inexperiente, por súbito esquecimento, por ignorância de algum escriba emprestado.
Deu-me um trabalho muito grande ficar sem essa letra. Quando olhava para o meu nome sem ela, sentia como se me faltasse um pedaço, como se estivesse realmente mutilada, sem a mão ousem o olho. Consolava a letra perdida. Escrevia-a sozinha, do lado, sorria-lhe, contava-lhe coisas, para distraí-la. Tudo era muito infantil e muito triste. A pobrezinha ficava para trás, e dava-me saudade. Recapitulando estas coisas, sinto-me entristecer, e preciso recobrar a minha força de vontade para não alterar outra vez o sobrenome.
Afinal, como último trabalho convincente, estabelecemos este acordo. A letra não ficaria perdida: seria usada nos documentos oficiais, nesses lugares respeitáveis em que a firma é a garantia da nossa pessoa recebendo e pagando os lugares que nos vemos que merecem a consagração e a estima unânimes dos nossos colegas humanos.
Quanto às coisas literárias, essas efêmeras coisas pelas quais vamos morrendo dia a dia, não são assim de tal modo graves, que precisem da firma autêntica, daquela firma por que os juízes nos podem perguntar um dia, brandindo um papel pavoroso e fulminante: «Dize, bandido, foste tu que assinaste este documento?» Não, as coisas literárias não chegam a esse ponto. O mais que nos pode acontecer é tirarem o nome que escrevemos no fim e substituírem-no por outro, sem juiz, sem fulminação, sem defesa...
Isto posto, a letra abandonada e eu nos abraçamos ternamente, e nos separamos. Como era uma letra suave, terá querido dizer com o seu romantismo: «Quero apenas que sejas menos infeliz. Acompanhei-te durante tanto tempo! Tiveste tanta dificuldade em aprender a escrever-me... Pensavas com inocência no mistério das letras dobradas... Sentias orgulho, na escola, por essa letra dobrada no nome... Mas talvez eu esteja pesando demais na tua vida. Não fiques triste. Adeus.»
Fiquei muito triste. Faltava-me a letra. Já não era como se me faltasse um pedaço de mim — mas um parente, um amigo extraordinário.
A minha vida, porém, mudou tanto, que, por mais saudade que me venha dessa letra perdida, não me animo a fazê-la voltar.
E está feita a confissão. Como se vê, uma história longa, que não se pode repetir a cada instante. Principalmente porque é uma história íntima, e ninguém deve cortar as letras do seu nome só por ter visto outras pessoas fazê-lo. E fica explicado para sempre que assino deste modo por motivos sobrenaturais, fantásticos, como quiserem, mas não pela reforma ortográfica, aliás muito cautelosa com os nomes próprios, respeitando-os tanto quanto me parece deverem ser respeitados, principalmente pelos mistérios que dentro deles vão navegando.
(Rio de Janeiro, A Manhã, 27 de dezembro de 1944.)
In Obra em prosa, vol. I, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1998, p. 105.