Trabalho perto do Chiado, em Lisboa. Tenho, por isso, o hábito e o privilégio de almoçar em alguns daqueles simpáticos restaurantes que se encontram espalhados pela Calçada do Combro.
Porém, todos os dias se repete a mesma história. Desde logo, na porta: «abertos das 09h00m ás 22h00»; depois, já dentro do restaurante, olho em volta, e lá me deparo acidentalmente com o já tradicional «á caracóis»; em seguida, sentado, peço o menu, e aí estão as famosas relíquias da língua e da gastronomia portuguesas: «bacalhau á lagareiro» e «bife á casa»; como se não bastasse, ainda mal recomposto do violento e súbito ataque de acentos agudos de que fui alvo ao longo deste breve percurso, alguns dias (felizmente só alguns), quando me dirijo à casa de banho para lavar as mãos, sofro o golpe de misericórdia, ainda por cima em letras garrafais: «Não á papel».
Juro que nunca consegui entender o porquê da opção obsessiva e já quase universal pela formulação "á" ou "ás". Como não embarco em teorias da conspiração, não quero acreditar que se trate de um complô contra o acento grave [`]. Será que se deve ao facto de o acento agudo [´] ser muito mais comum na língua portuguesa do que o grave e, por isso, em caso de dúvida, se opta pelo agudo? Então e que dizer da substituição do Há pelo á? Bem, aqui só consigo encontrar uma única explicação: como o H é mudo, tira-se!
O problema é que, normalmente, há razões válidas para as coisas serem como são, e o «á» praticamente não existe na língua portuguesa (a não ser como nome da letra A)1; já o «ás», por exemplo, como carta de baralho. Na esmagadora maioria das vezes em que se utiliza (erradamente) «á» ou «ás», dever-se-ia usar à ou às, isto é, a crase (contracção) da preposição a com o artigo definido feminino a e as, ou com um pronome iniciado por a (aquele, aqueles, aquela, aquelas, aquilo e aqueloutro). Ou seja, o acento grave serve, no fundo, para nos lembrar da existência dessa fusão [a + a].
O caso da troca do há pelo "á" é ainda mais insólito, porque se está a substituir um verbo (neste caso, o haver) por uma alegada preposição. Tomando como exemplo a frase «á caracóis», o que se quer na verdade dizer é «Há caracóis», isto é, «temos caracóis», «existem caracóis neste estabelecimento».
Assim, dever-se-á sempre, mas mesmo sempre, escrever «abertos das 09h00m às 22h00», «Há caracóis», «bacalhau à (maneira do) lagareiro», «bife à (moda da) casa», «Não há papel».
E, para não ser injusto, uma nota final: eu dei aqui o exemplo da área da restauração, mas a verdade é que este tipo de erros está por todo o lado, como uma espécie de vírus: nas repartições e nos institutos públicos e privados, nos transportes públicos, nas praias, nos cinemas, em prospectos turísticos e por aí fora. Aliás, é tão comum, que, por exemplo, na versão electrónica do Grande Dicionário Universal da Língua Portuguesa, da Texto Editora, se procurarmos por "á", surge-nos imediatamente o à.
Um colega meu costuma, sempre que pode, de forma sorrateira, com uma caneta, corrigir este tipo de erros. Eu ainda não cheguei a esse ponto… por enquanto.
1 Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa.