Sobre as "incorrecções" linguísticas convencionalizadas, um artigo de Ana Martins no Sol.
Há quem caia frequentemente na tentação de dizer que o português é uma língua colorida, cheia de matizes e surpresas, e, portanto, muito traiçoeira. O avesso deste chavão está na pressuposição de que há outras línguas que são monocórdicas e sensaboronas (a língua inglesa… não atraiçoa ninguém, diz a canção).
É uma visão de senso comum, claro está. As línguas não são listas de rótulos dados às coisas, não são feitas de símbolos previamente estipulados por uma lógica comunicacional prévia. Todas elas albergam a polivalência, a ambiguidade, a redundância, a vagueza, a contradição: há alguma língua no mundo que vede ao seu falante o direito à ironia?
Mas, de facto, o português não é parco em tergiversações semânticas. Por exemplo, dizemos que «houve um acordo verbal» para dizer que não ficou nada escrito e, no entanto, há o «verbalizar» que significa «exprimir por palavras, orais ou escritas», e há a oposição entre a «linguagem verbal» (a comunicação linguística, oral ou escrita) e a «linguagem não verbal» (pictórica, musical ou outra). Outro exemplo: ninguém estranha a expressão «católico praticante», mas já ninguém entende o que é um «budista praticante» ou um «muçulmano praticante». Depois, há os «independentes» de partidos políticos que se batem por um partido político, como em «Pelo palco do Coliseu passaram inúmeros independentes, como Alexandre Quintanilha, Miguel Vale de Almeida, Albino Almeida, Julião Sarmento, Rosa Mota, Jorge Armindo e Irene Pimentel, todos a apelar ao voto no PS.» (Público, 7/09/09).
Veja-se também a expressão «imprensa escrita»: é um abuso, pois se «imprensa» é o produto do acto de impressão — em papel — toda a imprensa é, por definição, escrita. Para terminar este breve rol de exemplos, outro pleonasmo: assume-se que há vírus mais virulentos e vírus menos virulentos: «o vírus da gripe A ainda não evoluiu para nenhuma forma mais grave, isto é, mais virulenta» (Público, 22/09/09).
Os amantes da língua portuguesa não se iludam: a fronteira entre a imprecisão plasmada nos dicionários e o vulgar pontapé na gramática é muito ténue.