A palavra democracia é um termo de sentido fluido? É este o ponto de partida do artigo de Ana Martins no semanário Sol.
É um assunto que tem desencadeado muito interesse em linguística: os termos vagos. Trata-se de palavras que captam a realidade como um continuum, cobrindo uma área que vai de um grau mínimo a um grau máximo de efectivação de uma propriedade ou substância. Por exemplo, a palavra careca tanto refere uma pequena raleira como a total ausência de cabelo. São termos vagos aqueles que podem ser modificados por adverbiais do tipo muito, pouco, mais, menos, mais ou menos, quase, de certa maneira, tipicamente, etc.
Entretanto, surge a pergunta, inevitável: O que não é um termo vago? E logo a seguir: A realidade não é, ela própria, fluida? Podemos dizer que o Everest tem limites imprecisos, argumentado que não se sabe bem quais as rochas da base que fazem parte do monte. Mas isso não faz do Everest um objecto vago. A realidade Everest só se torna vaga se o nome Everest for usado como termo vago. Pode parecer estranho o facto de uma palavra de significado absoluto ser empregue como termo vago. Mas a verdade é que é um fenómeno recorrente. O galicismo "tout court" serve, justamente, para pôr travão às relativizações.
Veja-se o que diz o dicionário sobre a palavra democracia: «sistema político em que o poder emana do conjunto dos cidadãos». Portanto, à partida, ou há democracia ou não há. Agora veja-se o que dizem os nossos políticos. Luís Filipe Menezes: «(...) nomear este ou aquele seria redutor para a democracia portuguesa» (17/07/09); Jerónimo de Sousa: «[o voto na CDU] significa mais democracia para um país e uma região "asfixiados"» (16/07/09); Alberto Martins: « [a bancada socialista] acrescentou mais democracia à democracia» (8/07/09). Numa primeira análise, pressupomos a existência de uma escala que vai da Democracia Máxima (Terra do Nunca) à Democracia Mínima (terra do Alerto João) rumo ao Totalitarismo. Mas, vistas bem as coisas, ninguém pensa que Portugal, membro da UE, corra o risco de caminhar para uma Ditadura, pelo que a escala em causa é outra: de um lado, a democracia, do outro, a fuga às obrigações legais protagonizada pelos representantes do "poder do povo", que vai dar ao clientelismo, ao abuso de poder e à corrupção. É esse o grau zero da nossa democracia.
artigo publicado no semanário Sol, de 31 de Julho, na rubrica Ver como se Diz.