Sobre os contrastes na qualidade da escrita jornalística — contrastes que podem ocorrer num mesmo jornal. Trata-se de mais um artigo de Ana Martins no semanário Sol.
É inevitável: dar exemplos de falhas e imprecisões na escrita jornalística e identificar-lhes a fonte acarreta, para o jornal visado, juízos de valor pouco abonatórios. Porém, como aparecem aqui citadas publicações muito diversas, os casos cobrem-se uns aos outros e, enfim, concorrem para o sentimento geral de que já não há bom pano onde caia a nódoa.
Há bom pano, sim — e há a nódoa. Trago hoje dois exemplos, um bom e outro mau, retirados do mesmo jornal e só com uma semana de diferença.
«Banho na Afurada foi fatal para menina de 11 anos» (JN, 14/07/09). Trata-se de uma pequena reportagem em que à redacção linguisticamente imaculada se junta a presentificação do decorrer da acção da tragédia e a assunção da narração pela perspectiva de um protagonista: o pescador que salvou o primo e a amiga da menina desaparecida no mar. O texto é pungente, faz-nos comungar do luto e, simultaneamente, deixa entrever a recorrência dos afogamentos no Verão português, através da fala do pescador — «Deus deu-me este dom de apanhar pessoas» — e do comentário da jornalista — «explicou o pescador, que não usa o termo 'salvar' porque já resgatou muitas pessoas sem vida».
O termo de contraste: «Equipas anticarjacking saltam para helicópteros» (JN, 21/07/09). Pensamos: ou é gralha na preposição (deveria estar de em vez de para) ou saltar é um arremedo de metáfora. Avançamos para a leitura do texto, que começa assim: «Snipers, cães e helicópteros. Na GNR, as equipas anticarjacking estão a ganhar novos meios.» Sniper, que significa atirador, entra na classe dos meios, ao lado de cão e de helicóptero. Mais adiante, diz-se que «Os treinos estão a ser feitos para aplicaçar quer em deslocação das forças para assalto, quer no seguimento de veículos suspeitos», em que "aplicaçar" corresponderá a aplicar e seguimento a perseguição. Pelo meio, não se dispensa a redundância: «… tarefas de vigilância de suspeitos ou de locais onde estes se encontrem» e o paradoxo: «meio usado para garantir o factor surpresa».
Donde se conclui que a preferência do leitor por um dado jornal se explica apenas pelo facto de o Homem ser um animal de hábitos.
artigo publicado no semanário Sol, de 25 de Julho, na rubrica Ver como se Diz.