Sobre o excesso de orações subordinadas numa mesma frase — um artigo de Ana Martins no semanário Sol.
As 27 funções da palavra "que". Verdadeira palavra mágica da nossa língua é o título do livro de José Perea Martins, editado pela brasileira Ediouro. Que a palavra que tenha 27 funções é óptimo, mas que ela apareça 27 vezes num mesmo texto breve é dramático.
Centremo-nos apenas no que como pronome. Que introduz uma oração relativa e não tem significado por si próprio: vai buscá-lo a uma expressão antecedente, na oração superior. Assim, na frase «O Zé não fez o trabalho que eu lhe pedi», que retoma «o trabalho». Acresce que a oração relativa (sublinhada) aduz uma qualificação ou propriedade a essa expressão antecedente — por isso é que estas orações também são conhecidas por «orações adjectivas». Mas, ao contrário dos adjectivos, que podem aparecer em grande número, não sem custos estilísticos e comunicativos, a adjunção excessiva de orações relativas tem, para além disso, implicações na estrutura da frase.
Vamos aos exemplos da escrita real:
«Ilda Figueiredo, que falava na terça-feira à noite naquele que foi o comício que reuniu mais público nesta campanha, (…)», (Lusa,3/06/09). «Ilda Figueiredo» é deixada para trás e imediatamente a frase galopa noutro sentido, atrás de outro tópico, «o comício». Felizmente que Ilda, que é pessoa, se distingue bem de comício, que é evento. A mesma sorte já não tem estoutra frase: «Mário Soares evocou o papel de opositores aveirenses como Mário Sacramento, Álvaro Sampaio e João Sarabando, mas também o governador civil que permitiu a realização dos três congressos, Vale Guimarães, que veio a ser mandatário da sua primeira candidatura presidencial, gesto que diz não esquecer.» (Lusa, 16/05/09): quem veio a ser mandatário de quem e quem não esqueceu o gesto de quem? Para cada pessoa enumerada há uma oração relativa: a frase não aguenta e afunda-se.