1. Não é necessária uma leitura especialmente atenta para detectar em Olhos Verdes, de Luísa Costa Gomes, opções gráficas inusitadas.
1.1. Vale a pena fazer uma listagem classificada de diferentes tratamentos gráficos de estrangeirismos.
Adaptações gráficas isoladas:
"Marquetingue" (p. 13)
"Brifingue" (p. 21)
"Zepingue"
"Overectingue" (p. 23)
"Cofiteibles" (p. 89)
"Disaina" (p. 105)
"Djines" (p. 14)
"Disaine" (p. 16)
"Luque" (p. 70)
"Of" (p. 178)
"Leiaute" (p. 106)
"Toquechô" (p. 176)
"Frilance" (p. 71)
"Obis" (p. 80)
"Stendebai" (p. 59)
Adaptações gráficas que pertencem à norma do português do Brasil
"Caubois" (p. 9)
"Estoque" (p. 29)
"Butiques" (p. 126)
"Tualete" (p. 110)
"Pivô" (p. 51)
"Dossiê" (p. 37)
"Clipe" (p. 23)
Adaptação gráfica e adaptação morfológica
"Brifar" (p. 21)
"Postar" (p. 63)
"Flartação" — de flirt (p. 169)
Ausência de adaptação gráfica
Bourbon (p. 13)
Boxers (p. 15)
Design
Stedy-cam (p. 23)
Stacato (p .55)
Repartee (p. 86)
Tailleur (pp. 109, 177)
Red (p. 108)
Doberman (p. 125)
Hardware (p. 157)
Instabilidade gráfica
"Écran" (p. 23 — três ocorrências)
"Écran" (p. 42 — três ocorrências)
Ecrã e écran (p. 51)
Ecrã (p. 150)
"Écran" (p. 174)
Ecrã (p. 175)
"Écran" (p. 179)
1.2. O que é desde logo é possível observar é a forte flutuação de critérios nesta adaptação gráfica.
1.2.2. Bourbon, Boxers: estas duas palavras aparecem em itálico, mas noutras formas não adaptadas isso não acontece.
1.2.3. "Djines" (p. 14): esta forma faz pressupor (falsamente) que a grafia traduz a fonia. Trata-se de uma pressuposição falsa porque, como sabemos, o português não tem uma grafia fónica. É de lembrar que muitas explicações de ordem gráfica estão na etimologia. Para além disso, basta ver que um mesmo fonema pode ser representado por vários grafemas:
Ex.: [Z]
= "s": usar
= "z": azar
= "x": exigir
1.2.4. Porém, em muitos destes casos, a grafia não corresponde à pronúncia corrente do português europeu: "Cofiteibles" (p. 89); "Disaina" (p. 105), "Brifingue" (p. 21); "Zepingue"; "Overectingue" (p. 23)
De facto, a pronúncia original desta sílaba final -ing mantém-se em português europeu.
1.2.5. Dentro de uma mesma palavra pode haver dualidade de critérios:
Ex.: Langerie : Lan- (grafia fónica) + -rie (grafia que respeita a língua fonte)
Zombie: -bie (grafia que respeita a língua fonte)
1.3. Paralelamente a estas situações, ocorre a anulação do estrangeirismo: veja-se a tradução de boxers: calções.
1.4. Não raro temos quer a ausência quer a presença de adaptação gráfica.
Considerem-se apenas estas palavras que ocorrem no livro:
"disaine" — com adaptação
hardware — sem adaptação
No entanto, ambas estão totalmente integradas na língua, e os dicionários não registam dupla forma — como, aliás, acontece com: dossiê — dossier.
2. Atente-se na especificidade da grafia em "djines".
O inglês possui as consoantes "dj" e "tch" (ex. chat, «conversação»). Estas consoantes não existem no português-padrão europeu. Quando as palavras são integradas no léxico do português, as consoantes são pronunciadas como "j" e "ch": "jins"; "chat".
"Djines" — tal como aparece escrito na obra — reproduz a pronúncia mais fiel em relação à língua de origem, a mais prestigiante, por evidenciar um mais elevado grau cultural.
3. Importa ver o que se passa no uso-padrão. É possível aí verificar que uns estrangeirismos sofreram mais adaptação do que outros.
Há a considerar vários graus de adaptação/integração de estrangeirismo em português.
1. Alterações fonéticas.
2. Possibilidade de formação de novas palavras pode derivação/composição.
3. Só depois: aparecimento de formas gráficas em alternativa às da língua de origem.
O maior/menor grau de integração pode depender do grau de frequência de ocorrência do estrangeirismo.
3.1. No que toca à normalização da grafia de estrangeirismos, é de sublinhar que não existe em Portugal uma tradição de adaptação da escrita das palavras estrangeiras nem existe nenhum documento ou entidade oficial que dê orientação sobre como essa adaptação deve ser feita.
Na comunicação social há clara tendência para manter a forma gráfica original.
Já no Brasil, em que há maior absorção de palavras importadas (sobretudo do inglês americano), há também maior adaptação fonética, na variedade do PB, e maior grau de adaptação gráfica:
Ex.:
Estoque
Esnobe
Flerte
Drinque
O que está em causa é chegar a uma convenção — a grafia depende de critérios extralinguísticos, os que dizem respeito à normalização e à política de língua:
«Ora sendo a palavra escrita um produto da cultura, nisto, como em tudo mais, o indivíduo tem o direito de adoptar a que quiser — a que lhe parecer melhor e mais conveniente.»
(Fernando Pessoa — A Língua Portuguesa, ed. de Luísa Medeiros, Assírio e Alvim, col. Obras de Fernando Pessoa, 1997)
Na essência desta reflexão há dois aspectos em contradição.
Ao longo da história do estudo da língua, a conformidade com a língua de origem dos empréstimos (o latim e o grego) é avaliada positivamente.
É de lembrar que o português moderno é marcado ao nível do léxico pela adopção e adaptação de palavras do latim, das línguas germânicas, do árabe, do francês.
«E na língua, na qual, quando imagina
Com pouca corrupção crê que é Latina.»
(Lusíadas, "Consílio dos Deuses", Canto I, 33.)
«Se a maioria caiu em usar estrangeirismos ou outras irregularidades verbais, assim temos de fazer: "match de football" diremos, e não "partida de bolapé".»
(Fernando Pessoa — A Língua Portuguesa, ed. de Luísa Medeiros para a Assírio e Alvim, col. Obras de Fernando Pessoa, 1997, p. 20)
Mas, por outro lado, a importação sistemática de termos provenientes de outras línguas é sentida como um factor de descaracterização do português.
A função básica do estrangeirismo é dar resposta à necessidade de nomeação de conceitos ou objectos específicos de outra cultura. Com o inglês como língua franca no plano científico e tecnológico, o anglicismo é a solução mais cómoda, rápida e eficaz numa comunicação globalizada.
A defesa da língua passa pela defesa da cultura, da investigação, do desenvolvimento, da criação artística e pela produção/criação de mais objectos e ideias nos países lusófonos. A língua é sempre suporte de alguma coisa. Inevitavelmente, quando se importa um objecto, importa-se também a palavra que o designa:
«A língua morrerá se os seus falantes apenas morrerem de amor por ela.»
(Mário Vilela 1995 — Léxico e Gramática, Almedina)
4. Retornemos à obra Olhos Verdes. Não há só (re)criação ao nível gráfico — há também uma criação libertária/libertina de novas palavras.
Neologismos:
"Insubstancial" (p. 33)
"Pequenismo" (p. 38)
"Desligação" (p. 47)
"Budidade" (p. 63)
"Empuxar" (p. 76)
"Medusado" (p. 86)
"Geometrizado" (p. 106)
"Imbonito" (p. 106)
5. A pergunta inevitável que há a fazer é a seguinte: que relação há entre estas "grafias desviantes" e o conteúdo/situações representadas no livro?
Consideremos várias hipóteses.
5.1. As palavras que aparecem no livro com grafia aportuguesada, entre outras, são palavras-chave — e chavões — de uma dada ordem social: classe média-alta; modo de vida urbano.
Design
Marketing
Briefing
Close-up
Freelance
Layout
Hardware
Configuram modos de dizer que revelam tiques, manias, molduras da vida moderna; moldam, à escala global, gostos, divertimentos, crenças, esquemas pré-formatados de relação entre as pessoas, um mundo de futilidades e de (auto-)imagens construídas.
Palavras como estas têm grafia não adaptada perfeitamente consagrada — o escrevê-las com grafia aportuguesada é marcá-las, assinalá-las dar-lhes destaque no discurso da obra.
5.2. Carácter caricatural de quem abusa de estrangeirismos: palavras de prestígio caricaturadas na sua pronúncia e na sua grafia:
Ex.:
"Cofiteibles" (p.89)
"Disaina" (p. 16, 105)
"Toquechô" (p. 176)
5.3. Jogo na dissociação som — imagem da palavra:
«— O meu nome é Eva Simeão e edito uma revista de desaine. (...)
A mulher já não está nervosa. Tem um plano. Está sentada à secretária a desenhar a palavra design em letras góticas. (...) Desenha um ponto de interrogação desproporcionado sobre a palavra design» (pp. 16-17).
5.4. Exercício de experimentalismo
5.5. Instabilidade gráfica: anulação da corporeidade da palavra pela arbitrariedade na fixação da palavra.
Lemos no Capítulo V:
«A matéria não existe» (p. 135).
«As palavras não designam coisas que existem realmente» (p. 145).
Aliás o Capítulo V é um capítulo "excedente". A exposição da teoria de Berkeley (filósofo do princípio do séc. XVIII), que aí toma assento, revela as ideias que estiveram na base da constituição das situações representadas na obra, a saber:
— o isolamento do indivíduo
— a arbitrariedade das experiências/ausência de projectos
— a crença no transcendental
— a intensa consciência de si próprio
— a perda da noção do real
Temas que se perfilam na estética do pós-modernismo:
«(...) universo de indivíduos que criam continuamente as suas percepções, isolados uns dos outros em casulos sensoriais parecidos com tubos de realidade virtual (...)» (p. 150).
Texto-base do programa Páginas de Português de 18-03-2007