A sonda espacial referida pelo consulente foi batizada com o nome de um obelisco que contém uma inscrição bilingue que serviu, juntamente com a famosa Pedra de Roseta, para decifrar os hieróglifos egípcios. O obelisco, aliás, apresenta a mesma designação que a ilha onde se encontra. Esta ilha, situada em pleno lago Nasser, no Egito, era conhecida por Φίλαι1 em grego. Os romanos, naturalmente, transcreveram este topónimo por Philae (também grafado Philæ), vocábulo que, inicialmente, teria sido pronunciado ['pʰilai̯], mais tarde ['pʰilae̯] e, finalmente, ['filɛː]2. Ora, no Egito, já não se fala grego, mas, sim, árabe egípcio, e os egípcios chamam a esta ilha فيلة/'fiːlɐ/. Este topónimo arábico, que obviamente provém do grego Φίλαι, pronuncia-se quase como o nosso vocábulo fila, como se pode constatar aqui. Refira-se ainda que os egípcios aplicam à sonda exatamente o mesmo nome (فيلة) pelo qual conhecem a ilha, o que faz todo o sentido, pois o primeiro deriva do segundo.
É sabido que a grande maioria dos vocábulos portugueses provêm da correspondente forma do acusativo latino. Ora, o acusativo de Philae é Philas, pelo que este topónimo naturalmente dá Filas em português, tal como Athenas (acusativo de Athenae) dá Atenas, Thebas (acusativo de Thebae) dá Tebas, Delphos (acusativo de Delphi) dá Delfos, etc. Os dicionários de latim-português que pude consultar1 traduzem justamente Philae por Filas. José Pedro Machado, no seu conhecido dicionário onomástico, apresenta em verbete explicativo a forma Filas, embora aponte também a variante Filé, que remete para a primeira4. É também o vocábulo Filas que figura como entrada na página da Wikipédia referente a esta ilha, onde existia um magnífico templo consagrado a Ísis, conhecido por Templo de Filas, o qual, devido à construção da barragem de Assuã, foi posteriormente desmantelado e reinstalado na ilha de Agilkia, onde atualmente se encontra5. A referida página da Wikipédia aponta também a variante File, a qual encontro abonada apenas num dicionário enciclopédico publicado no Brasil5. De todas estas variantes, Filas, no meu entender, merece clara preferência, não só pela abundância de fontes, como por uma questão de congruência com os topónimos de origem grega anteriormente referidos.
Quanto à sonda espacial, a denominação que lhe foi dada (Philae) é um vocábulo inglês de origem latina. É este o nome que, em inglês, se dá ao referido obelisco e à ilha onde ele se ergue. Grafa‑se como em latim, mas a pronúncia é diversa. Na respetiva página da Wikipédia em inglês, figuram duas articulações possíveis (/ˈfaɪli/ e /ˈfiːleɪ/), ambas abonadas com referência de pé de página (uma delas televisiva), mas aqui, se o ouvido não me engana, encontro mais uma variante: /ˈfiːlaɪ/!
Em português, salvo melhor juízo, temos três opções, todas elas plausíveis e com antecedentes dignos de nota:
1) Ou se considera que o nome da sonda espacial, por derivar do referido topónimo, deverá ter a mesma forma que o nome da ilha egípcia, ou seja, Filas (ou qualquer uma das outras duas variantes menos recomendáveis: Filé, File). Foi este o procedimento adotado no caso da sonda Marte.
2) Ou se considera que o nome da sonda, por se tratar de um vocábulo inglês (como no caso da sonda Voyager), deverá grafar-se e pronunciar-se como tal. Neste caso, o problema será escolher uma das três prolações apontadas...
3) Ou, por fim, se considera que o nome da sonda, por se tratar de um vocábulo latino (como no caso da sonda Luna ou do foguetão homónimo), deverá grafar-se e pronunciar-se como tal. Mais uma vez, levanta-se o problema da pluralidade de pronúncias...
Perante tal diversidade de soluções, é natural que o uso jornalístico manifeste certa diversidade, como o consulente registou. A primeira solução (Filas) seria, a meu ver, a mais curial, mas a homonímia com o substantivo comum filas, a homofonia com a forma verbal fi‑las e, sobretudo, o facto de o topónimo em questão ser quase desconhecido, torna-a eventualmente pouco viável. Um bom compromisso será porventura grafar Philae, como em inglês e em latim, e proferir este vocábulo como em latim tardio, ou seja, /'filɛ/ (notação em que o símbolo ɛ representa um e aberto, como em inclusive*).
1 Acentuação paroxítona, de acordo com o Dictionnaire Grec Français de A. Bailly, 27.ª edição, Hachette, 2000. Outras fontes, porém, como o Dictionnaire Latin Français de Félix Gaffiot, 9.ª edição, Hachette, 2000, referem acentuação oxítona: Φιλαί.
2 Numa resposta anterior, poderá o leitor interessado encontrar uma resenha sobre a evolução da pronúncia do latim ao longo dos séculos, e nestoutra, uma explicação mais minuciosa sobre a prolação do ditongo ⟨ae⟩.
3 Dicionário Latim-Português, 2.ª edição, Porto Editora, 2001. | F. R. dos Santos Saraiva: Novissino Diccionario Latino-Portuguez, 9.ª edição, Garnier (1.ª edição: 1881).
4 José Pedro Machado: Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa. Segundo Volume E-M. Lisboa: Confluência 1984. p. 642.
5 Dicionário Enciclopédico Koogan Larousse Seleções. Vol. 2. Nomes Próprios. Rio de Janeiro: Seleções do Reader’s Digest 1978. p. 1210.
* Trata-se da pronúncia-padrão do português de Portugal.