Uma questão de gramática - Diversidades - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Uma questão de gramática

Imaginei, até há não muito tempo, que só o fundamentalismo de certos leitores podia fazer dos erros gramaticais na Imprensa um verdadeiro drama, senão uma questão de Estado.

Semanas e semanas a fio, recebi cartas a denunciar as torturas a que é sujeita a língua portuguesa e não comentei. Apontaram-me erros de palmatória que aparecem diariamente e fiz por esquecer. Chegaram até a perguntar-me quais as habilitações mínimas para se escrever nos jornais e, naturalmente, fingi que não dava pela ironia do agastado leitor.

Os motivos por que ignorei até agora o tema são de vária natureza. À uma, não tenho competência específica, nem vejo no provedor um vigilante da gramática. Depois, o problema dos desvios linguísticos e, em particular, das responsabilidades que cabem neste domínio aos meios de comunicação tem sido tratado frequentemente, a vários níveis - académico, político e mesmo jornalístico -, sem que daí tenham vindo conclusões ou resultados assinaláveis. Finalmente, os erros de ortografia, que são aqueles contra os quais há mais reclamações, não me parecem sequer os mais graves, muito embora constituam intolerável manifestação de ignorância.

Sem dúvida, escrever permissa em vez de premissa é uma falta de respeito para com os leitores. Mas confundir sistematicamente o significado de palavras que se utilizam, desconhecer formas elementares de construção da frase, ou escrever parágrafos inteiros quase sem nenhum sentido é muito pior. Sempre que tal acontece na Imprensa, a estranheza, até pela vastidão do público a que os jornais estão expostos, é enorme e as críticas tendem a surgir de todos os lados. Os próprios jornalistas, aliás, são os primeiros a ter consciência disso, como se pode ver pelas conclusões do seminário sobre "A língua portuguesa e a comunicação social", realizado em 1989, onde foi sugerido que se instituísse em cada órgão de comunicação social o "provedor da língua portuguesa", destinado a "assumir nesta matéria a defesa dos direitos do público", além de se recomendar a adopção de um "livro de estilo" nos jornais e a criação de núcleos de consultores da língua portuguesa nos audiovisuais.

Escusado será dizer que a estranheza com que são olhados os erros nos jornais, e que faz deles um dos alvos preferidos dos críticos da "degradação" da língua pátria, deriva sobretudo da sua maior exposição. Em outros meios, talvez se escreva pior, mas repara-se menos. Convirá, pois, ter em conta o que afirmam dois conceituados especialistas, João Andrade Peres e Telmo Móia, num livro intitulado Áreas Críticas da Língua Portuguesa, todo ele feito a partir de textos colhidos em jornais recentes: "Considerando os jornais que lemos - não por dever de ofício, mas por prazer de cultura e de cidadania -, podemos afirmar sem hesitação que, em geral, neles se escreve português de lei, dentro da norma que têm seguido os maiores cultores da língua. E não podemos esquecer que, desde o século passado até aos nossos dias, entre os nossos melhores escritores se têm contado jornalistas, artífices da luta diária sobre as palavras, verdadeiros mestres da língua, cujos nomes não mencionamos apenas para não cometermos a injustiça de esquecer algum."

A exigência em matéria linguística, dirigida aos órgãos de comunicação, deve-se, em resumo, à própria natureza da actividade. De um jornalista espera-se que esteja informado, mas espera-se também, e antes de tudo o mais, que domine razoavelmente a língua em que comunica com o seu público. Pode não ser um "artista da palavra", coisa bem diferente. O que não pode é ignorar as palavras - a sua ortografia, o seu significado, os seus modos de articulação. Infelizmente, parece, muitas vezes, ignorar algumas ou todas essas coisas.

Repito que não é o puritanismo fanático pelas normas que me aconselha nesta matéria. Pelo contrário, sei que uma língua não é inerte e muito menos intocável. Devo, além disso, lembrar aqui a advertência que fazia, na Revista Internacional de Língua Portuguesa, o já citado prof. João Andrade Peres: "Qualquer acção que vise uma melhoria no domínio do desvio linguístico - seja ela profiláctica ou terapêutica - deve, a meu ver, ser selectiva. Quero com isto dizer fundamentalmente duas coisas: em primeiro lugar, que os objectivos a definir devem ser razoáveis, não podendo, por exemplo, contrariar tendências claramente estabelecidas e, portanto, inelutáveis; em segundo lugar, que esses mesmos objectivos devem ser definidos em função de uma escala de importância, sobrelevando o essencial ao acessório."

Vejamos alguns exemplos.

Casos

Pelo que já ficou dito, não vou demorar-me em erros de ortografia. Nem tão-pouco nos tratos que sofrem palavras já fora de uso na comunicação oral, como acontece com o desastrado cujo. Ou nas concordâncias a que são sujeitos alguns verbos, como haver ou existir. Ou ainda na incapacidade, aparentemente sem retorno, de se distinguir entre "a razão do ministro" e "a razão de o ministro". Limitar-me-ei a citar algumas frases encontradas, completamente ao acaso e sem método, na "grande" imprensa da semana passada. E para que não se julgue que o problema é só daqui, do DN, começarei por dois exemplos respigados no exterior. Primeiro: "Garcia dos Santos explicará, por outro lado, que já deu essa explicação ao procurador-geral da República, a quem depôs durante três dias consecutivos pouco depois da crise ter rebentado." Segundo: "Uma fonte da Polícia Judiciária de Setúbal disse (...) que os quatro arguidos deverão ter feito um pacto de silêncio."

Passemos, então, ao DN. Assim:

- "A frase, de um militante que participou no debate, foi lançada como sugestão para conseguir passar a mensagem."

- "A futura auto-estrada que vai ligar ao Algarve não vai rasgar o Caldeirão."

- "O forcado Pedro Bela Corsa, que contava 22 anos, elemento do Grupo de Forcados de Portalegre, que morreu, na quinta-feira, em Lisboa, é enterrado, hoje, em Portalegre."

- "Recorde-se que o Ministério Público junto da Audiência Nacional se opôs, desde o início, a toda e qualquer tentativa desencadeada pela justiça espanhola sobre ditaduras sul-americanas."

- "Wye Plantation não pode acabar com um fracasso, mas também não poderá terminar com um documento que não tenha repercussões no terreno."

Comentário

Poderia citar muitos mais exemplos do mesmo género. Mais e, também, piores.

Aquilo que pretendo assinalar não é, no entanto, a dimensão dos erros, é a frequência com que eles aparecem. Porque distracções acontecem a qualquer um. Conheço, inclusivamente, um catálogo de "distracções" de autores contemporâneos da literatura portuguesa, elaborado ao longo de anos por mão paciente e um tanto ou quanto pérfida, e não creio que se possa concluir daí seja o que for quanto aos autores lá incluídos, muito menos quanto a uma eventual degradação do português. Mas uma coisa é detectar-se num romance um daqueles erros de que só está livre quem nunca escreve, outra é ser constantemente sobressaltado, quando se lê um jornal, por faltas de concordância ou absurdos semânticos dificilmente explicáveis em alguém que é suposto ser profissional da comunicação.

Em tempos, escrevemos aqui que era injustificado ou, pelo menos, excessivo o alarme feito em torno de muitos neologismos. Tal como então dizíamos, uma boa parte deles são inevitáveis. No que toca, porém, à adulteração da estrutura das frases, o caso muda de figura. E se é verdade que o português que se escreve nos jornais continua, no geral, a ser de lei, não é menos verdade que o número de excepções diárias começa, neste capítulo, a ser preocupante.

Fonte

Artigo publicado no jornal português Diário de Notícias do dia 26 de Outubro de 1998.

Sobre o autor

Diogo Pires Aurélio é Doutorado em Filosofia Moderna pela Universidade Nova de Lisboa, preenche o cargo de Professor Associado no departamento de Filosofia na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Além deste cargo, foi também diretor da Biblioteca Nacional, presidente da Comissão Nacional da Unesco e Administrados da INCM. Publicou ainda algumas obras como: A Herança de hölderlin (1978), José Marinho 1904-1975 (2004) e Maquiavel e Herdeiros (2012).