A INSISTÊNCIA de um certo humor televisivo lisboeta na exploração das particularidades fonéticas do modo de falar do Porto é eficaz como caricatura, mas tem o inconveniente de apresentar uma visão redutora de um fenómeno extensível a todo o País, e não exclusivo de uma dada região. O facto de ser o Porto a fonte inspiradora da graça a partir dos sons das palavras poderia ter várias explicações de raízes sociológicas, logo a começar pela natural rivalidade entre os dois principais centros urbanos, com passagem pela eterna questão da norma imposta pelo poder.
Fosse o Porto a sede do poder político e dos grandes órgãos de comunicação social difusores daquilo que se supõe ser o modo correcto de falar e, por certo, lá estariam os lisboetas a ser massacrados pelo modo como, por exemplo, acentuam o «u» em final de palavra.
Gil Vicente, no auto pastoril A Visitação, para fazer graça junto do rei imitava o falar das beiras, região onde, na altura, se situava algum do contra-poder à corte situada na capital. Os linguistas e foneticistas costumam relativizar a importância destas questões, e Armando Lacerda, considerado um dos maiores foneticistas da língua portuguesa, duriense assumido, gabava-se em Coimbra, onde dava aulas, de pertencer a uma cidade que tinha honra em guardar o seu sotaque. Ele próprio não fazia qualquer esforço para amenizar os ditongos.
Mais recentemente, Mário Vilela, catedrático da Faculdade de Letras do Porto e um dos grandes especialistas nesta área, fez uma experiência junto do corpo docente da escola, para avaliar até que ponto se verificava ou não, num sector mais culto, um assinalável afastamento dos traços distintivos do característico falar do Porto. O resultado foi elucidativo: a generalidade dos professores naturais do Porto assume com naturalidade que na sua linguagem estão presentes os traços identificadores da fonética portuense. Mário Vilela afirma que esta situação é reveladora da «auto-estima que as pessoas sentem pelos seus modos de ser, viver e falar».
O que distingue o falar do Porto, mais que a maior ou menor criatividade de algumas expressões populares - aliás presente em todo o País - é a fonética. Os órgãos que articulam a fala dos portuenses são rigorosamente iguais aos de qualquer português. Contudo, talvez por influência de réstias de uma língua anterior ao galaico-português, no Porto os «b», por exemplo, são mais fortes e sobrepõem-se aos «v». Daí resulta o «binhu» (vinho), «barãnda» (varanda), «biána» (Viana) ou «bibu» (vivo).
Os ditongos «ão» ou «õe» são muito acentuados e prolongam-se mais que em outras regiões. Para dizer limão, irmão, Bolhão ou cartão, um habitante do Grande Porto pode transformar um dissílabo num trissílabo ao acrescentar um «e» fechado e anasalado no final da palavra. A transcrição fonética permitiria entender este fenómeno em toda a sua extensão, mas não é perceptível pelo comum dos leitores, pelo que nos dispensamos de avançar aqui com um exercício quase académico.
É possível detectar fenómenos semelhantes em palavras como fonte ou morto. Um portuense de Miragaia ou da Sé - áreas onde se mantém com mais força este traço de identidade - acrescentará uma espécie de «u» antes dos «o» fechados de fonte e morto. No limite, uma palavra como ponte quase parecerá «põente», na boca de um residente na Bainharia.
E aqui temos uma outra faceta. Em palavras onde se encontram as palatais «lh», como telha ou palha, teremos «teilha» ou «pailha», como «beiju» para referir «vejo». Estes exemplos ilustram um modo de falar que tem vindo a perder-se, devido à influência normalizadora da televisão e da rádio. Ninguém espere, por isso, chegar ao Porto e tropeçar em portuenses que trocam os «b» pelos «v» e apresentam um sotaque muito cerrado e acentuado. Uma outra particularidade do falar do Porto, e nem sempre entendido para quem chega, é o modo descomplexado e até com sentido majorativo como são utilizadas palavras e expressões que noutros locais são tidos como grandes palavrões. Não é invulgar ouvir um amigo dizer a outro, dando-lhe uma palmada nas costas: «Anda cá, meu filho da puta...» Tal como não é uma coisa do outro mundo presenciar uma mãe a regalar-se com uma tropelia do filho, chamando-lhe carinhosamente «cabrão do caraças».
Este jeito singular de criar expressões estranhas, com frequência brejeiras, muito explorado nos bairros populares, não tem qualquer carga negativa e constitui, muitas vezes, um factor de socialização. Nas duas caixas inventariamos algumas frases e expressões idiomáticas utilizadas no Porto ou na sua área de influência. Como se vê, há uma preponderância de frases e termos que jamais teriam lugar no baile de debutantes do Clube Portuense. Algumas são inequivocamente do Porto, outras terão sido assimiladas, mas em nenhum lado são ditas como aqui. E é esse modo muito particular de dizer que faz com que se tornem propriedade da comunidade de falantes portuenses.
Vocabulário
Aloquete - Cadeado
Azeiteiro - Aquele que vive à custa de prostitutas
Benha - Diz-se repetidas vezes, e é o grito de guerra dos arrumadores de carros para assinalar um lugar vago entre muitos outros disponíveis. É um «beinha» que prosaicamente significa «venha»
Botar - Pôr, deitar
Breca - Cãibra
Burgesso - Aquele que, além de burro, é teimoso
Canalha - Miúdos, catraios
Calcantes - Sapatos
Cimbalino - Café
Carago - Na verdade é caraças o que mais se utiliza para referir de forma metafórica o órgão sexual masculino
Cruzeta - Cabide
Chuço - Guarda-chuva
Estrugido - Refogado
Fino - Cerveja servida a copo
Infusa - Jarro
Moina - Polícia
Molete - Pão, carcaça
Mor - Termo utilizado pelas vendedeiras. Abreviatura de «amor»; forma carinhosa de chamar o cliente
Morcão - Palerma
Perseguida - Órgão sexual da mulher
Sameira - Cápsula de refrigerante
Vagem - Feijão verde
Expressões idiomáticas
Chá de Bico - Clister
Deu-lhe a filoxera - Desmaiou Dar corda aos vitorinos - Andar rápido, fugir
Dói-me o garfeiro todo - Doem-me os dentes
Estar com os vitorinos encharcados - Estar bêbado
Estar de beiços - estar amuado
Falar ao microfone - O que é suposto Monica Lewinsky ter feito a Clinton e que o Presidente dos EUA alega não ter sido uma relação sexuaL
Foi fazer tijolos - Morreu
Foi medir caixotes - Morreu
Mandar uma traulitada directa à caixa dos fusíveis - Dar um murro nas ventas, quer dizer, no focinho, ou seja, na cabeça
Narizinho de cheiro ou de caticha - Diz-se de alguém que se ofende facilmente Secou-se-lhe o céu da boca - Morreu
Vai no Batalha - Como quem diz: isso é filme; forma mais prosaica de dizer que é mentira
Vai à postura - Vai até à praça de taxi
Via de serventia - Expressão das mulheres do povo na sua relação com os ginecologistas
Artigo publicado no semanário português Expresso do dia 1 de Novembro de 1998.