Os Descobrimentos e eu ... (7) - Diversidades - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Os Descobrimentos e eu ... (7)

Uma das recordações ou experiências muito positivas que eu guardo do ensino primário da era portuguesa em Goa é a prática de exames orais públicos já no primeiro grau ou na 3ª classe. Para uma criança de oito e nove anos isso já dava uma certa auto-confiança perante o público. E com os exames daquele tipo, os próprios professores ficavam sujeitos ao juízo dos presentes. Favoritismos óbvios tornavam-se difíceis.
Infelizmente, em face da ignorância e indisponibilidade da grande maioria das populações rurais para estarem presentes a tais exames reduzia bastante esse aspecto positivo. Foi o que aconteceu no meu caso. Ninguém da minha família esteve presente para o meu exame final do primeiro grau. A minha professora de casa exprimiu o seu desagrado com a decisão da professora externa no júri que me declarou "optimamente habilitado" , enquanto o meu colega Piki saía com distinção depois de ter respondido a várias perguntas com o rubro da cara e abanos de cabeça. A minha professora Belmira da Cruz diria mais tarde à minha mãe que ela não pactuava com injustiças, mas não era sempre capaz de vencer as pressões sociais que forçavam alguns diferendos nos resultados dos exames.
Esta experiência influenciou a minha vida a longo prazo. Seguindo os conselhos da minha professora Belmira da Cruz, que era benfeitora da sociedade missionária de S. Francisco Xavier, ou mais vulgarmente conhecida como Congregação dos Padres de Pilar ( uma congregação religiosa fundada pelos padres goeses com grande sucesso missionário em Goa e noutras partes da Índia ), eu era para ser um candidato deles. A minha mãe chegou a levar-me para falar com os responsáveis dessa congregação na aldeia de Goa-Velha onde eles tem um seminário. Foi a capital dos reinantes Kadambas de Goa durante mais de um século, e o museu do seminário guarda peças arqueológicas raras desse passado. No século XVII os Franciscanos tiveram aí um convento dedicado a Nossa Senhora do Pilar. O antigo convento foi oferecido aos padres naturais de Goa nos meados deste século, quando eles fundaram erigir uma congregação missionária. Estava marcado o dia para eu entrar nela. Mas, se os caminhos de Deus são tortuosos, já os senti eu!
Porque quereria eu entrar no seminário? Porque seria que em Goa portuguesa abundavam vocações? Era corrente ouvir entre os Goeses que o primeiro filho era para o mundo, para assegurar a continuidade da família. O segundo era para Deus, para evitar divisões e feudos patrimoniais. O terceiro seria para o diabo, isto é, fazia-se advogado ou solicitador, ocupando-se com demandas e litígios. Na minha casa éramos só dois filhos ( e uma filha), e sendo eu o segundo, fui convencido que tinha vocação para padre.
O meu irmão tinha optado pela educação privada em inglês, e a situação financeira da família não dava para acarretar os custos da educação dele e também minha, se eu tomasse o mesmo rumo. Não tínhamos a hipótese de educação secundária no liceu situado na cidade capital de Panjim. Os transportes diários, ou o alojamento na capital ultrapassavam os recursos económicos da família. A solução para mim, e para muitos rapazes das zonas rurais residia no seminário. A educação era quase equivalente ao do liceu, havia mais disciplina, e pagava-se pouco. Havia bôlsas para formação dos candidatos para padres.
A minha vocação tinha ainda umas outras duas razões de ser: Alguns colegas meus de escola, ou melhor, de futebol, tinham decidido entrar no seminário menor da arquidiocese. Eu não queria perdê-los. A segunda razão igualmente séria: O Piki ia também para o seminário. Achei que no seminário haveria mais justiça, e que ficaria provado quem era mais inteligente e merecia uma melhor classificação! Havia portanto contas para ajustar, e foi o que decidiu a minha escolha do seminário diocesano, ficando esquecida a sugestão e a preferência da minha professora.
Éramos sete seminaristas da minha aldeia, e alugávamos um táxi que nos levava a todos e a nossa bagagem até o planalto de Saligão-Pilerne, onde ficava situado o seminário. Distava uns 12 quilómetros da minha aldeia de Moirá. Começava uma nova fase da minha vida. O seminário era um berço de lusofonia para uma grande parte dos Goeses das zonas rurais e sem acesso fácil ao ensino secundário liceal na cidade capital. Se eu não tivesse frequentado o seminário, seguiria talvez o rumo seguido por muitos outros da minha família com estudos nos colégios privados de inglês.
A língua oficial de comunicação no seminário era o português. Muitos como eu ficamos mudos durante os primeiros dias. Tínhamos que pagar uma pequena multa todas as vezes que éramos apanhados pelo monitor da turma a conversar em Concani. Essa pressão e o constante ouvir da nova língua deu para eu começar a sentir-me mais à vontade dentro de pouco tempo. Com a missa diária e as prédicas frequentes, não havia falta de vocabulário religioso. Mas curiosamente, os prefeitos de disciplina e o director espiritual referiam muitas vezes ao perigo das «amizades particulares», que nós devíamos evitar a todo o custo. Soube através dos colegas e em gíria deles que se tratava de "pocorpiação" (uma palavra derivada de Concani-Marata "pôkddunk" ou agarrar, violar) ou um tipo de relacionamento homosexual que não era raro no seminário, e que os responsáveis pela disciplina não tinham coragem de abordar com maior abertura pedagógica.

Sobre o autor

Teotónio R. de Souza (1947-2019). Historiador nascido em Goa, ex-sacerdote católico, foi fundador e diretor do Centro Xavier de Pesquisas Históricas. Era professor catedrático na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, no departamento de História. Foi diretor do jornal da Associação dos Cientistas Sociais do Espaço Lusófono e diretor-adjunto da revista Fluxos e Riscos- Revista de Estudos Sociais.