Na China, os velhos ideogramas foram modernizados. No Japão, aos tradicionais caracteres chineses somaram-se dois silabários para maior eficácia. E nas Coreias independentes, foi-se buscar o revolucionário sistema hangul inventado por um rei. Mesmo assim, quem já visitou esses países do Extremo Oriente sabe que para um ocidental qualquer cartaz, jornal ou livro lá permanece um mistério. O mesmo não acontece, porém, no Vietname, pois esse país asiático adotou o alfabeto latino e isso deve-se sobretudo ao trabalho de um jesuíta português, Francisco de Pina, que aprendeu a língua local, o anamita, estudou-a a fundo e finalmente avançou com a sua romanização. Tudo isto há 400 anos. E se o sacerdote nascido na Guarda em 1585 não tivesse morrido num naufrágio em Hoi An (Faifo) com apenas 40 anos, seria também dele o primeiro Dicionário de Português-Vietnamita.
«Francisco de Pina aprendeu a língua do Vietname, o anamita, com tal perfeição que chegou a ser professor dos seus companheiros. Foi ele o inventor do alfabeto romanizado anamita, chamado quôc-ngu, utilizado pelo jesuíta Gaspar do Amaral no seu Dicionário Anamita-Português, e, posteriormente, pelo jesuíta francês Alexandre de Rhodes», explica Francisco Correia, também ele sacerdote jesuíta.
Acrescenta o responsável pelo Arquivo Histórico da Companhia de Jesus em Portugal que «Francisco de Pina não compôs nenhum dicionário, provavelmente porque não teve tempo para o fazer, pois faleceu com 40 anos. Todos os seus apontamentos e esboços explicativos para uma gramática e certamente para a elaboração de um dicionário foram parar às mãos de outros missionários».
Se os guerreiros e os mercadores portugueses aprendiam os idiomas longínquos por necessidade, já o interesse dos missionários pelas línguas e pelas culturas de países distantes baseava-se na necessidade de levar a Boa Nova, ou o conhecimento do Evangelho, aos povos com quem os países europeus, sobretudo Portugal e Espanha, iam entrando em contacto, fosse por conquista ou através do comércio. João Rodrigues, outro jesuíta beirão, editou o primeiro Dicionário de Japonês-Português em 1603, e Matteo Ricci, jesuíta italiano que estudou Português em Coimbra, criou ainda no século XVI o primeiro Dicionário de Chinês-Português. Mais tarde, no século XVIII, foram também jesuítas a criar no Brasil os primeiros dicionários de português-língua geral, ou tupi.
O Japão era o destino de Francisco de Pina quando partiu para o Oriente em 1608, mas as perseguições dos xoguns do clã Tokugawa aos cristãos, vistos como ameaça à unidade nacional, fizeram do Vietname afinal a sua terra de missão, à qual chegou em 1617 depois de ter completado os estudos em Macau e ter sido ordenado padre em Malaca (Pina pertencia à Companhia de Jesus, desde 1605).
«Tendo sido os primeiros europeus a percorrer sistematicamente as costas da Ásia e a estabelecer relações com os seus países, os portugueses foram também os primeiros europeus a sentir a necessidade e o apelo de saber línguas orientais. Mais tarde, em contrapartida, os primeiros tratados celebrados pelos holandeses com potentados asiáticos foram escritos em português", enquadra o historiador João Paulo Oliveira e Costa. O professor da Universidade Nova, especialista na história da expansão portuguesa, acrescenta que «os missionários tinham um interesse acrescido em dominar essas línguas asiáticas, pois cedo se aperceberam de que a evangelização dos povos tinha de ser realizada nas línguas nativas. Da aprendizagem intuitiva e pessoal passaram numa ou duas gerações para a sistematização do conhecimento e para a publicação de dicionários e gramáticas, que hoje são Património de Humanidade quer pela sua dimensão cultural quer pela sua importância para a linguística».
Pioneiro no estudo da língua anamita, Francisco de Pina teve seguidores, alguns deles portugueses, como o já citado Gaspar do Amaral e ainda António Barbosa e Manuel Ferreira. Em 1651, 26 anos depois da sua morte no litoral vietnamita, foi publicado em Roma o Dictionarium annamiticum, lusitanum et latinum, dicionário trilingue tendo como autor Alexandre de Rhodes, que a posterior colonização francesa da Indochina, no século XIX, sobrevalorizou a ponto de o reivindicar como o criador da romanização do anamita, apesar de esta ter tido como base a fonética portuguesa.
O empenho de figuras como Francisco de Pina, e outros padres e não padres, em aprender as línguas locais é ainda mais admirável quando se sabe que, na época, o português se impunha da Índia ao Japão como uma espécie de língua franca, a ponto de ser usada mesma por outros europeus e de vários idiomas asiáticos terem ainda hoje palavras de origem portuguesa.
Cf. A Língua Portuguesa na base escrita do vietnamita
Artigo publicado no Diário de Noticias de de 4 de maio de 2020.