Um poeta na turma - Antologia - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Um poeta na turma
Um poeta na turma

Sebastião da Gama

Ainda não disse que tenho um Poeta na turma. É o Romão. Faz o possível por "parecer" Poeta, pela maneira como se senta, pelo tom de voz, e até pelo reclamo falado que de si faz: assina "o Poeta"; acha naturalíssimo que eu lhe chame "ó Poeta" e diz aos outros que se não devem admirar de que haja Poetas que escrevem prosa: «Eu também sou Poeta e faço muitas redacções.» Tenho-lhe dito que é preciso ser Poeta principalmente por dentro; ele deve sabê-lo e é muito capaz de sê-lo: o que escreve traz o selo tão nítido, que o rapazinho talvez não se tenha enganado a seu respeito. Imaginação, boa escolha das palavras e uma gramática pavorosamente à Gomes Leal; pontuação não é com ele: a sua prosa (assinada assim: "o Poeta prosador") é parente do verso de Aragon.

Pois o Romão quis ler Uma Corrida em Salvaterra, e eu invejei a leitura de que foi capaz. Ouvi-o com gosto, se não com entusiasmo. E mais ainda quando, não aproveitando do trecho senão o facto de apresentar um português valente, dos que dantes havia, improvisa um discurso tão correctamente conduzido, tão bonito e tão rico de frases felizes, que parecia preparado. Mas não era: o Poeta estava a falar. E o Poeta tinha o coração nas mãos (já sei porque é que ele põe as mãos num gesto que eu a princípio não percebia).

Dizia ele que «a alma portuguesa foi sempre grande». Invencível sempre, foi antigamente, no entanto, «mais firme, mais impetuosa». Hoje deixaríamos morrer afogado, junto de nós, quem quer que não fosse da nossa família (pai, mãe, irmão…) porque a morte nos aterroriza; porque (como a ordem das palavras é já de Poeta nesta frase!) «hoje o medo de morrer é grande».

E etc. Neste etc. ia um apelo do Poeta — do mais fundo, dos mais humanamente bonitos do Poeta: «Devíamos ser todos irmãos.»

A lição de gramática fora pensada, pelo menos parte dela, em casa: Os espanholismos do vocabulário do toureio e a sua justificação; a partir daí falei-lhes de anglicismos e francesismos, de italianismos e respectivos, mais frequentes, domínios vocabulares.

Outra coisa em que toquei, a propósito das palavras, foi no eufemismo. Perceberam. O maroto do Artur, quando eu lembrei que a pessoa a quem morre um parente muito querido diz de preferência ele faleceu, descobriu logo: «Ah! Por isso é que no jornal nunca vem morrimentos; vem sempre falecimentos.»

Se eu não risse era um palerma. Se eu o mandasse para a rua (há quem faça isso, por causa disto, sim, senhor!) era uma dúzia de palermas.

Sebastião da Gama

Fonte

In Diário (1948-1949)

Sobre o autor

Sebastião da Gama (Vila Nogueira de Azeitão, 1924 – Lisboa, 1952) foi um poeta e professor português. Foi colaborador das revistas Árvore e Távola Redonda. Iniciou o seu percurso literário com Serra Mãe (1945) e posteriormente Cabo da Boa Esperança (1947) e Campo Aberto (1951).