Pessoas de verbo complicado - Antologia - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Pessoas de verbo complicado

Até podem não ser nada complicadas a falar nem na sua maneira de ser. Até é possível que sejam pessoas extremamente simpáticas e de trato agradável. Mas aí está. Por qualquer razão que pode ser simplesmente o desempenharem um cargo importante, o usarem um nome ilustre, o terem uma fortuna considerável, as referências que lhes são feitas trazem o tal verbo complicado. E então o senhor não vai, desloca-se; o senhor Sicrano não fala, usa da palavra; o senhor Beltrano não estuda um assunto, debruça-se sobre ele.

Se observarmos com atenção estas frases, podemos verificar que o «deslocar-se» uma pessoa tem, de facto, muito mais dignidade do que o «ir» puro e simples. Uma pessoa desloca-se, isto é, sai do lugar confortável onde se encontrava, e isso é um esforço, um favor que faz a alguém, é como se arrastasse atrás de si um manto, sente-se tudo isso no verbo, não é verdade? Agora, «usar da palavra». Notem como é bela essa expressão. Nada de falar, qual! Falar está ao alcance de qualquer pessoa, todos nós falamos, é só abrir a boca e lá vai disto, agora de «usar da palavra» poucos são capazes. É necessário pegar nas palavras, escolher as melhores, as de ressonância mais perfeita, manejá-las com arte, usá-las por fim. E «debruçar-se» sobre um assunto? Estudar implica necessidade de trabalho, isto é, confessa ignorância sobre o referido assunto. Debruçar-se, inclinar-se, enfim, dar uma breve vista de olhos, que diferença! A pessoa curva um pouco a cabeça, ao de leve, claro está, e abrange tudo, sente-se logo capaz de falar horas e horas sobre o caso.  […]

Mas há mais de verbo complicado, ora se há! Não vou lembrar-me de todas elas, claro, como seria  possível? Só de três ou quatro.

Aqui temos, por exemplo, as que «se fazem acompanhar» por A, B ou C. Porque A, B ou C não têm categoria mental ou social para resolverem de motu proprio acompanhá-las? Talvez tenham, mas o protocolo exige… então as outras, as tais, fazem-se acompanhar.

Há agora o senhor Fulano que não compareceu, claro está, mas «se dignou comparecer» em determinado lugar onde «proferiu algumas palavras». Note-se que não disse «proferiu» e o «algumas» é um notabilíssimo eufemismo, porque em geral as palavras são muitas e até muitíssimas. E o «dignar-se» tem muita categoria. Diz o Cândido de Figueiredo1 que «dignar-se» é «condescender, fazer mercê ou favor, ter a generosidade ou a bondade». E, claro que está implícito, possuir aquela categoria que explica todo o resto.

Há a pessoa que «ausculta» os problemas de uma cidade ou de uma empresa ou até simplesmente de uma família. Não ouve, não. Pega no seu imaginário estetoscópio, qual, nem de estetoscópio precisa porque o seu ouvido é mais perfeito. Ausculta, pois. Três, cinco minutos de atenção, já ouviu tudo, já compreendeu o que ouviu, já resolveu o que compreendeu.

Agora temos aquela pessoa a quem tentámos telefonar pela manhã ou à noite e que, diz-nos a empregada snob por contágio, não pode atender porque ainda está a «descansar». Nada de dormir, que horror, dormirá mesmo a referida pessoa? Ressonará? Mas que ideia, uma tal pessoa a ressonar! Nem mesmo podemos estar certos de que se deita. Descansa, isso sim, reclina-se. Num maple, numa cama, num lit de repôs? Quem pode sabê-lo? Só que está abstractamente a «descansar» e àquela hora é impossível levarem-lhe o telefone.

Não vou mais longe, e, de resto, nunca mais voltarei às pessoas de verbo complicado.

1 Cândido de Figueiredo: autor de um dicionário da língua portuguesa.

Fonte

Crónica integrante do livro A Janela Fingida, Seara Nova, 1975.

Sobre a autora

Maria Judite de Carvalho (Lisboa, 1921 – Lisboa, 1998) foi uma escritora portuguesa que viveu, entre 1949 e 1955, em França e na Bélgica. Colaborou no Diário de Lisboa, no Diário Popular, no Diário de Notícias e n’O Jornal. Da sua obra, traduzida em grande parte em francês e espanhol, destacam-se: Os Armários Vazios (1978), O Homem no Arame (1979) e Tanta Gente, Mariana (1988).