Língua literária artificial e língua literária sincera - Antologia - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Língua literária artificial e língua literária sincera

Uma língua, considerada no conjunto das suas palavras, pode, segundo o espírito que sobre ela e com ela trabalha, apresentar-se-nos sob dois aspectos - que definirei por meio de uma comparação. Ou é, através de páginas frias, uma coisa descolorida e pálida como um herbário, onde se dispõem plantas mortas, secas e sem perfume; ou estremece e canta como um prado onde o sol bate verdejantes, pletóricos vegetais, escorrendo seiva.

No primeiro caso está essa língua artificialmente afeiçoada, com uma paciência que alinha, recorta, classifica o termo, mais pelo seu valor próprio como parte integrante de um vocabulário, do que como elemento de expressão, vivamente, sinceramente reveladora de um temperamento, de uma personalidade.

No primeiro caso está essa língua com que se fazem complicados o bisantinos exercícios literários, segundo mortos e frios modelos clássicos, que têm um sabor próprio, se nos reportarmos ao tempo em que vicejaram, mas que tomam um carácter estranho e incompreendido, quando venham aflorar no meio de uma língua transformada, senão em cada termo e acepção, pelo menos na sua harmonia geral.

Talhar, pois, a frase, e aplicar o termo segundo os modelos, contornando, arredondando, escrevendo como as gerações passadas fizeram, apropriando moldes que outros construíram, para neles vazar o sentimento e a ideia; usar servilmente das locuções em que enquistaram velhos pensamentos e paixões, para definir novos modos de pensar e sentir - afigura-se-me processo semelhante ao daquele que imaginasse fazer tomar raiz a um arbusto já fossilizado sob várias camadas geológicas. Cada coração de artista é como uma gleba, onde misteriosamente se formam todos os elementos necessários às vegetações do sonho e da vida ideal.

E, como cada planta que jorra do solo, cada obra que brota desse torrão humedecido de lágrimas ou retalhado de convulsões íntimas, traduz a natureza especial da terra onde mergulham as suas raízes, ao mesmo tempo que estende os ramos, braceja e se inclina, atraída pelo sol de um pensamento, de um ideal colectivo, ou de uma forte originalidade.

Ora, na composição desse solo, entram as partes constitutivas de uma língua: os seus termos, os seus vocábulos, as suas propriedades, que alimentam as novas plantas, mas transformando-se, combinando-se diversamente em cada temperamento, assim como as propriedades gerais da terra variam e se distinguem de zona para zona.

Os elementos da língua têm portanto de sofrer dentro de cada organismo uma metamorfose, entrando depois disso na natureza e estrutura da planta literária.

Só depois disto é que esta sai verdadeiramente bela, exalando aromas acres de vida, de generosa seiva.

Quanto mais rico desses elementos íntimos for o solo, melhor será a obra. Mas os bons olhos distinguirão sempre, ó caturras! a planta formada, crescida na soberba e indómita violência da natureza livre - das recortadas e frias combinações que fizerdes, dessas vegetações adormecidas nos frios jazigos, que se chamam dicionários e vocabulários. As páginas em que as alinhardes podem ser rendilhadas caprichosamente pelo encruzamento dos seus ramos; podem brilhar com o espelhado das suas folhas luzentes ainda; mas não terão o perfume embriagante da vida directamente aspirada; mas essa página em que as pregarem, como árvores e arbustos de teatro, não exalará, fazendo-nos dilatar deliciosamente as narinas frementes, esses fortes aromas que sobem do fumegar das leivas, que se ergue à flor da Terra como o olor de um seio quente.

A língua vive numa sucessão de períodos e fases de contínua transformação, como uma espécie vegetal vive numa série de gerações, em cuja constituição entram sempre as qualidades fundamentais, mas donde destacam os indivíduos notáveis, quando as condições da parte do solo em que mergulham lhes são especialmente favoráveis.

Identificados, como se identificam sempre o espírito e sentimento criador com a sua criação, uma página que se lê é como um retalho de coração, onde floresce uma esperança, ou donde irrompe um desespero. Por isso não se pode arrancar dessa página a palavra, a frase, o período fogoso, intimamente revelador - sem que alguma coisa de íntimo e visceral se desprenda dela, como um braço de raiz que ainda vem molhado e quente do húmus.

Mas páginas destas só nascem de escritores poderosos, vivendo inteiramente, absolutamente, da sinceridade do seu temperamento.

Fonte

De "Um ano de Crónica", Lisboa 1889 capítulo sobre "Eça de Queiroz e os Maias", pág. 137 e ss. in "Paladinos da Linguagem", 3.º vol., Aillaud e Bertrand, Lisboa, 1923.

Sobre o autor

Manuel da Silva Gaio (Coimbra, 1860 – Coimbra, 1934) foi um poeta, teorizador e ensaísta português, formado em Direito pela Universidade de Coimbra. Consagrado pela sua poesia, que se situa na convergência das tendências neorrimântica e simbolista, foi uma grande influência junto de outros poetas de seu tempo. Assim, são de sua autoria Novos Poemas (1906) e A Dama de Ribadalva (1901).