A linguagem de Camilo não é tanto a língua portuguesa genuína e opulentada de todos os vocábulos que uma retentiva paciente é capaz de ir colher aos vernaculismos do povo e das bibliotecas, como o instrumento vivo e acirrante dum espírito de artista que, por profundo e multíplice, houve mester, como os órgãos das catedrais, de exprimir por tubos de cobre a potência orquestral da sua voz.
Outros como ele trabalharam a língua portuguesa, e a souberam com intimidade igual e exuberância parecida; mas nenhum lhe deu aquela alma indómita, transfiltrando-lhe a pompa, o brilho, a energia e a graça em que ele a amoedou.
Estes predicados, muitos são da língua, convenho; quintessenciados porém pelo talento do escritor, e adquirindo pelo individualismo dele uma acuidade incomparável. A prova disto é a prosa de Camilo não ser susceptível de imitar-se. Todos os pasticheurs nela sossobram, porque essa elocução e esse estilo não são como os dos outros, só feitos de palavras: são a voz de um espírito, têm o timbre próprio de uma laringe, são ideias gravadas; e porque na história do português escrito se não chegue a elas por uma evolução metódica, impossível usá-las sem lhes falsear o cunho originário, e impossível assim de tomá-las como ponto de partida para a fundação de uma arte nova de escrever.
Camilo teve este supremo dom de trabalhar, sobre uma língua compacta e por vezes incapaz de traduzir certas finuras, a mais fulgurante e a mais dútil de todas as línguas - isto sem lhe escambar o valor primevo, nem lhe meter de enxertia o estrangeirismo. E conseguiu isto, valendo-se dos seus conhecimentos de purista, e logo exalçando-os com a sua fascinadora improvisação.
Assim, a frase dele morde o assunto, como o ácido a lâmina de gravura sulcada a ponta de estilete; e desta cunhagem modelar brota uma imagem súbita, luminosa, que ainda bem não mexe no nosso ouvido, já se está a mexer no nosso cérebro, com uma estranheza intensa, que muita vez chega a produzir em nós a derrocada...
Um dos predicados admiráveis desta língua é não cheirar ela nunca a literatura: ser uma língua de acção, embora às vezes bizarra e com efeitos orquestrais, que tanto lhe vêm dos assuntos como da combinação rítmica das silabas. Também raros escritores possuem, como Camilo, a intuição da língua em que convêm tratar o assunto, e o poder de inventar para cada género de tema o vocabulário, o estilo, e a fantasmagoria interior que lhe são próprios.
Título de Ciberdúvidas. In "Paladinos da linguagem", 1.º vol., Aillaud e Bertrand, Lisboa, 1921.