Invenção da escrita - Antologia - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Invenção da escrita


Com as minhas mãos calejadas e fortes
aprendi a trabalhar novos materiais:
depois da pedra veio o bronze,
depois da madeira o aço, o barro e o ouro.
Eu não parava de crescer
em tudo aquilo que aprendia,
eu não parava de me deslumbrar
com tudo aquilo que descobria  
e ainda me faltava aprender
tanta, tanta coisa. Um dia
disse para comigo: "O que aprenderes
também deves ensinar",
e foi assim que fiz dos filhos
meus alunos e dos alunos
meus herdeiros. Ensinei-os
a usar o fogo, a erguer a cabana,
a construir a embarcação, a fazer a sementeira,
a colher os astros, a amar a natureza,
a acreditar no sonho, a falar
com os pássaros e com os rios,
a decifrar as vozes do vento e do trovão.
Fiz da terra ampla e livre
a escola em que aprendi e ensinei.
E um dia disse: "É preciso deixar sinal
de tudo aquilo que já sei."
Olhei de novo para as minhas mãos
e pedi-lhes, a elas e ao pensamento,
um novo e derradeiro esforço:
foi assim que inventei a palavra "escrita",
primeiro com imagens, por fim com letras.
O que eu já tinha caminhado,
por veredas íngremes e por estradas largas,
até chegar ali: o fascínio de uma palavra
erguida com tinta negra
sobre papiro, sobre pergaminho, sobre papel.


José Jorge Letria
Fonte
In No Voo de uma Palavra, Teorema, 1991

Sobre o autor

José Jorge Letria (Cascais, 1951) estudou Direito e História e é pós-graduado em Jornalismo Internacional. Para além de se ter dedicado ao jornalismo, foi autor de programas de rádio e televisão. Colaborou em várias publicações, como Hífen, Vértice e Boca Bilíngue, tendo sido subchefe do Jornal de Letras ou correspondente de Delibros. Integrou, com José Afonso, Adriano e Manuel Freire, o movimento da canção da resistência. É, desde 2011, presidente da Sociedade Portuguesa de Autores. Da sua obra, destaca-se O Fantasma da Obra (1993); O Homem que tinha uma árvore na cabeça (2002) e Um Amor Português (2000).