Esta língua e eu - Antologia - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Esta língua e eu

Nunca vou conseguir avaliar esta língua apenas pela sua música. Está demasiado dentro de mim para que seja capaz de alcançar esse exercício. Disse a minha primeira palavra em 1975 e, desde então, o meu vocabulário tem aumentado. Ao ponto de, quando não sou capaz de dizer algo nesta língua, ter a sensação, certamente errada, de que se trata de um assunto impossível de descrever.

Estou misturado com esta língua. Corre-me pelo interior dos pensamentos e estou convencido que esse lugar sou eu: a minha história, aquilo que fui capaz de aprender. Todas as ideias me são ditadas nesta língua, até as mais inconfessáveis, as que nunca chego a contar a ninguém, que rejeito logo, que não sei donde me surgem, até as ideias mais banais, que quase não escuto por serem tão prosaicas, tão feitas de quotidiano repetido.

Estou nesta língua e, talvez por isso, não gosto sempre dela. Não sou desse tipo de gente que todos os dias aprecia aquilo que o espelho reflete. Mas não é uma situação que me aflija. Sei com segurança que também esta língua nem sempre gosta de mim.

Podia ser pior. Cá nos vamos amparando. É como se tivéssemos um contrato silencioso. Esta língua dá-me muito e eu tento não ser mal-agradecido, esforço-me por dar algo que possa ser-lhe útil.

E assim o tempo vai passando.

Mês após mês, ano após ano, é como se partilhássemos um apartamento. Habituámo-nos ao cheiro um do outro, implicamos com as pequenas coisas (comeste os meus iogurtes?) mas temos os nossos momentos, são nossos e, quando acontece alguma novidade, temos pressa de chegar a casa para contá-la um ao outro.

Nunca vou conseguir avaliar esta língua apenas pela sua música, como nunca vou ser capaz de dizer ao certo se a minha mãe é bonita. Há fortes campos magnéticos que me desafinam esses barómetros. Não chego a sentir a angústia. Aquilo que tenho e que sou capaz de discernir dessas relações satisfaz-me e lança-me desafios de suficiente complexidade.

Por isso, não se espere que eu afirme que esta língua é mais agradável do que o húngaro ou do que o finlandês. Da mesma maneira, não vim aqui para dizer que a minha mãe tem uma beleza rara, com encantos mais especiais do que a vizinha ou do que a mãe dos outros. Mas é minha mãe. Da mesma maneira, esta língua é minha e eu também lhe pertenço.

Adorava estar na disposição de escrever uma ode a esta língua, com a voz colocada para ser ouvida nas últimas filas, cheia de adjectivos arcaicos e exclamações solenes. Duvido que faltassem ocasiões para usar essas palavras, teriam préstimo para adornar muitos momentos. Mas hoje não estou próprio para sentimentos tão fervorosos. Estou tranquilo, coberto por alguma sensatez; e, se bem a conheço, creio que esta língua também não está com pressa de chegar a nenhum lugar, sinto-lhe essa paciência na respiração. Sinto essa paciência em mim, na minha respiração. Às vezes, não sei se sou eu que falo com esta língua ou se é esta língua que fala comigo.

Fonte

Artigo publicado em setembro de 2013, na Up Magazine, revista de bordo da TAP Portugal. Os nossos agradecimentos à Dra. Paula Ribeiro, diretora da Up Magazine, e à jornalista Maria Ana Ventura por terem possibilitado a disponibilização deste texto.

Sobre o autor

José Luís Peixoto, escritor português nascido em 1974 em Galveias (Ponte de Sor). Poeta e dramaturgo, é sobretudo ao romance que tem dedicado a sua atividade. Das suas obras, salientam-se Morreste-me, Nenhum Olhar (Prémio José Saramago 2001), Uma Casa na Escuridão, À Manhã, Cemitério de Pianos, Gaveta de Papéis, Cal.