Complexos - Antologia - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Complexos

Um poema retirado de A matéria do Poema, A matéria do Poema, do poeta português Nuno Júdice, num tom informal e leve, sobre a responsabilidade e os complexos de ser poeta de «a maior língua do mundo»,««a língua do Camões, a língua do Pessoa…», a língua de «duzentos milhões».


Vieram dizer-me que a minha língua
é a maior que há no mundo. Ao espelho, ponho a língua de fora: é
a minha língua, é portuguesa, mas não sei por que é que a consideram
a maior língua do mundo. Por muito que veja a minha língua ao espelho,
a língua que vejo não é maior nem mais pequena do
que milhões de outras línguas que há neste mundo. A não ser
que a minha língua não seja portuguesa, ou que uma língua
não tenha nacionalidade. Ponho-a de fora: e em vez de português
falo espanhol, falo inglês, falo francês, falo as línguas que sei
e as que não sei para que a minha língua deixe de ser portuguesa;
mas continuam a dizer que a minha língua é portuguesa,
e que é a maior que há no mundo. É, pelo menos, tão grande
como a língua de Camões, ou como a língua de Pessoa; a não ser
quando Camões fala castelhano, ou quando Pessoa fala inglês.
«E se me deixassem a língua em paz?» peço. Não serve de nada.
«Não vês que a tua língua é a maior do mundo? Como tu, duzentos milhões
têm a mesma língua; por isso, é a maior que há no mundo,
sem pensar nas outras que podem ser faladas por mais gente mas não
são tão grandes como a tua.» E volto a olhar a minha língua
ao espelho. «É a língua do Camões, a língua do Pessoa…» E sinto
um sabor estranho na minha boca, ao saber que tenho lá dentro duas
línguas, além da minha. E se eu bater com a língua no céu da boca? É
a minha língua, ou é a do Camões, ou é a do Pessoa, que vem bater
no céu da minha boca? E agarro na língua, para ver qual é a minha,
e arrancar da minha boca as línguas que não me pertencem, e devem
estar ressequidas de um e de mais séculos, se forem a do Camões e
a do Pessoa. É que eu não quero ter a maior língua do mundo; quero,
apenas, que a minha língua esteja quietinha, sem complexos
de grandeza, no lugar em que preciso dela para ir bater no céu
da boca, sem ter de empurrar para o lado as línguas do Camões, do Pessoa,
ou as dos outros duzentos milhões que fazem com que a minha língua
seja a maior do mundo.

 

Fonte

Matéria do Poema, Lisboa, Edições D. Quixote, 2008

Sobre o autor

Nuno Júdice (Mexilhoeira Grande, 1949 – Lisboa, 2024) foi professor catedrático da Universidade Nova de Lisboa. Antigo diretor do Instituto Camões em Paris, conta com um diverso rol literário, tendo sido distinguido com vários prémios, dos quais se destacam Prémio de Poesia Pablo Neruda atribuído a O Mecanismo Romântico da Fragmentação (1975), Associação Portuguesa de Escritores a Meditação Sobre Ruínas (1994) e Prémio Fernando Namora a O Anjo da Tempestade (2004).