Com palavras - Antologia - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Com palavras


Com palavras me ergo em cada dia!
Com palavras lavo, nas manhãs, o rosto
E saio para a rua.
Com palavras — inaudíveis — grito
Para rasgar os risos que nos cercam.

Ah!, de palavras estamos todos cheios.
Possuímos arquivos, sabemo-las de cor
Em quatro ou cinco línguas.
Tomamo-las à noite em comprimidos
Para dormir o cansaço.

As palavras embrulham-se na língua.
As mais puras transformam-se, violáceas,
Roxas de silêncio. De que servem
Asfixiadas em saliva, prisioneiras?

Possuímos, das palavras, as mais belas;
As que seivam o amor, a liberdade...
Engulo-as perguntando-me se um dia
As poderei navegar; se alguma vez
Dilatarei o pulmão que as encerra.

Atravessa-nos um rio de palavras:
Com elas eu me deito, me levanto,
E faltam-me palavras para contar...

Fonte
Poema do livro "Sonhar a Terra Livre e Insubmissa"

Sobre o autor

Egito Gonçalves (Matosinhos, 1920 – Porto, 2001), foi um poeta, editor e tradutor português. Fundou e dirigiu diversas revistas literárias, como A Serpente (1951) ou Árvore (1952-54). Em 1977, foi-lhe atribuído o Prémio de Tradução Calouste Gulbenkian, da Academia das Ciências de Lisboa, pela selecção de Poemas da Resistência Chilena. Em 1995, obteve o prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores com E No Entanto Move-se. O seu último livro, Entre Mim e a Minha Morte Há Ainda um Copo de Crepúsculo, foi editado cinco anos depois da sua morte.