Coágulo do Tempo - Antologia - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Coágulo do Tempo


Apreender com as palavras a substância mais nocturna
é o mesmo que povoar o deserto
com a própria substância do deserto
Há que voltar atrás e viver a sombra
enquanto a palavra não existe
ou enquanto ela é um poço ou um coágulo do tempo
ou um cântaro voltado para a sua própria sede
Talvez então no opaco encontremos a vértebra inicial
para que possamos coincidir com um gesto do universo
e ser a culminação da densidade
Só assim as palavras serão o fruto da sombra
e já não do espelho ou de torres de fumo
e como antenas de fogo nas gretas do olvido
serão inicialmente matéria fiel à matéria.

António Ramos Rosa

Fonte
in O Livro da Ignorância, 1988

Sobre o autor

António Ramos Rosa (Faro, 1924 – Lisboa, 2013), poeta, ensaísta e tradutor, foi um dos nomes cimeiros da literatura portuguesa contemporânea. A sua obra poética inicia-se em 1958 com a publicação de O Grito Claro, tendo, postumamente, publicado mais cerca de cem títulos, nomeadamente: Estou Vivo e Escrevo Sol (1966), Clareiras (1986), Três Lições Materiais (1989), Em Torno do Imperdoável (2012). Esta dedicação à poesia valeu-lhe o reconhecimento geral e muitos prémios literários.