As crianças praticam a língua como se esticassem fios de seda para prender os perímetros da vida e com os fios que sobram encontram tempo para enrolar devagarinho em bola de jogar sobre a terra húmida que ajudam a arrendondar com os pés pequenos.
Abrem lentamente as vogais (não importa se são nasais, abertas fechadas ou surdas) para exercitar palavras de janela aberta e encher de risos o silêncio. São vozes livres que juntam pelos cantos asas de gafanhoto, penas de pássaro, tampas de garrafas, latas vazias para construir ditongos e os lançar a plenos pulmões rio acima nos jogos que identificam o chão e proclamam a pertença.
Fecham os dentes com muita força sobre as palavras oclusivas para abrir a boca e deixar demorar o riso pelo sol, o leite e os cabelos do milho quando aparecem. Porque a terra tem movimentos esticam os braços em arco para abarcar dos sons todas as sílabas e deslocar ao sabor do vento os acentos dos graves aos agudos permitindo que os exdrúxulos, em certas situações, tornem mais tónicas as sílabas.
Sabem como são lugares sagrados as palavras e usam o acento circunflexo num jogo de sombras para tornar mais velhos e respeitados esses sopros de sílabas como avô, bênção, cânfora.
A morfologia das palavras tranforma-se como os bichos de crisálida em borboleta, sendo que as variáveis se incrustam no avesso da vida constituindo o seu bordado, jogo de signos, sonhos entrelaçados. Substantivos, adjectivos, artigos, pronomes e verbos são sempre infinitivamente variáveis consoante os estados do tempo, a presença da fome e a frequência da escola.
Certos adjectivos são recuperados do lixo e dos desperdícios e superlativam-se na recontrução do mundo em duas rodas, 4×4, todo o terreno, porque nada é simples nem absoluto e a forma pode ganhar outras formas trabalhadas por mãos hábeis. Também os sons da fala afinam o seu timbre à luz do sol para se tornarem muito mais íntimos quando a noite desce sobre o caniço.
As regras da composição dependem do que está mais à mão para juntar na vida: "Bem-me-quer; mal-me-quer; muito, pouco, nada...
Os verbos praticam-se na forma transitiva e têm naturalmente voz activa na massa do pão ou na conjugação do futuro, mesmo quando é imperfeito ou obriga aos imperativos de geografias menos iguais que outras.
Esta inocência da lingua e da linguagem pode ser surpreendida e aprisionada por alguns escritores que
Em mim funciona um forte encanto a tontos.
Sou capaz de inventar uma tarde a partir de
uma garça.
Sou capaz de inventar um lagarto a partir de
uma pedra.
Tenho um senso apurado de irresponsabilidades."(1)
Disse o Manoel de Barros, do Pantanal para o Mundo, citando Homero ou quem sabe os Concertos a Céu Aberto para Solos de Ave que costuma escutar.
O Mia Couto também. Um dia experimentou a poesia como a escola da iniciação que os miúdos são obrigados a frequentar. Andou por lá algum tempo de peito feito ao voo tocando um arco, razando as águas.
Sobre a língua disse ao Nelson Saúte (estava para ser segredo, mas publicaram tudo) :
"A Língua oficial tem de romper com o estatuto de oficialidade para se tornar uma língua de expressão plena, de tradução da intimidade. Os que pensam que isso só é possível se se agride a africanidade estão cativos de uma atitude estética. Afinal é preciso acreditar que os africanos, ao adoptarem uma língua europeia, não ficam em posição de inferioridade, a sua cultura originária é mais forte. Ao se apropriar de uma segunda língua essa cultura vai esvaziá-la, nela o seu sabor." (2)
Assim fazedor de rios, andou a inventar histórias na Berma de Nenhuma Estrada. Tem gente que fica ofuscada com o seu exercício da língua 1/8 (não sei se se diz assim em música) acima do que é normal. E falam até que ele inventou uma língua para falar sozinho. Os mais gramáticos chamam-lhe nomes feios como logoteta, subvertor, desarrumador de regras. Não creio e ainda que se fosse assim estaria muito bem acompanhado numa festa de parentes ilustres como Lewis Carol, James Joyce, Luandino, Guimarães Rosa. Parece-me que, como o adivinho diante do cesto de adivinhação, o Mia Couto organiza as palavras da infância e paga o preço de ter passado pela poesia. Podem secar-se pântanos e construir-se outros mundos por cima, as cicatrizes ficarão para sempre prontas a sangrar ao mínimo toque.
Passou-se para a prosa mas ficou preso nas malhas das experiências primeiras: levantar as saias da língua e experimentar-lhe a pele.
Os antepassados agradecem, nossa alma vagabunda, blandiciosa... também.
Texto inédito escrito em Maio de 2003, em homenagem ao escritor moçambicano Mia Couto