Parece que o cérebro dos portugueses surpreende cientistas. A tal ponto que investigadores das universidades de Coimbra, Aveiro, Porto e Minho vão debruçar-se sobre esse órgão misterioso, vistoriando, com tenaz denodo e um pouco de apreensão, o que nos faz assim. Eis um empreendimento difícil, por avançar em terreno fértil de interpretações. É inumerável a lista de obras de todos os géneros e ramos que têm vasculhado a idiossincrasia do indígena nascido cá no brejo. Não se chegou a conclusão alguma. O português escapa-se como enguia ao catálogo, correspondendo, desse modo, às dificuldades erguidas a todos os que procuram desvendar o que se passa naquela inaudita massa cinzenta.
"O cérebro é o génesis", proclamou Jung. "Mas o que domina a vida é o sexo", afirmou Freud. Afinal, quem dá ordens? Citei dois; e coloque lá mais este, que, como os outros, dá para todas as circunstâncias, quando precisamos de muleta: Fernando Pessoa. Aí vai: "O português é capaz de tudo, logo que não lhe exijam que o seja. Somos um grande povo de heróis adiados. Partimos a cara a todos os ausentes, conquistamos de graça todas as mulheres sonhadas, e acordamos alegres, de manhã tarde, com a recordação colorida dos grandes feitos por cumprir (…) É difícil distinguir se o nosso passado é que é o nosso futuro, ou se o nosso futuro é que é o nosso passado. Cantamos o fado a sério no intervalo indefinido. O lirismo, diz-se, é a qualidade máxima da raça. Cada vez cantamos mais um fado".
Afinal, em que ficamos? Cabeça, sexo ou fadistice?
Um facto é incontroverso: cada vez somos mais ignorantes, cada vez somos mais atraídos para os alçapões do facilitismo, cada vez somos mais afastados de estudar, de reflectir, de analisar e, por decorrência, impedidos de decidir bem. "Como nação estamos condenados", disse-me, há anos, o prof. dr. Oliveira Marques, durante uma entrevista para a SIC. A terrível afirmação não obteve eco na Imprensa. O que encontra repercussão na Imprensa são futilidades da política, discussões filosóficas acerca de futebol, e aquelas parvoeiras sobre a "popularidade" do Sócrates, sem se indagar, cientificamente, a natureza específica das "sondagens".
O que se passa na estimável cabeça portuguesa é que não a usamos porque não a sabemos usar, e não a sabemos usar porque a isso não fomos instigados - pelo contrário. Tudo se opôs a que repelíssemos a servidão. A partir de Dom João III (o tal de procedeu ao desenvolvimento das universidades e, depois, pediu ao Papa a purificadora labareda da Inquisição) até aos dias "democráticos" de hoje, sem esquecer o querido Salazar, estivemos entregues a conclaves de malandros que acumulavam a patifaria com comovente inépcia. Dir-se-á: mas houve, e há, excepções. Em desacordo. Quem se cumplicia com a regra da infâmia é tão biltre quanto os que a estabelecem.
Sabe-se: a ignorância é destemida. E espalhou-se, endemicamente, a todos os sectores da sociedade. Há "escritores" manifestamente desconhecedores do significado de elipses, elisões, aliterações, cacófatos; de que se pode obter a concordância com o nome predicativo do sujeito e também não sabem o valor do nome predicativo do sujeito. Tropeçam na preposição e estatelam-se nos fonemas, com divertimento e galhofa. Há jornalistas que o não são, nem nunca o serão à força de o quererem ser. Plagiadores, também os há. Não só de temas: de frases, de locuções inteiras. Conheço alguns; a outros, ferrei em público. As escaramuças com a conjugação dos tempos do verbo haver transformaram-se num conflito armado. O desconhecimento de História, de Literatura, de Cinema, de Teatro, de Artes Plásticas, de Ciências, de Geografia, de Gramática, atinge níveis assustadores.
Perante este cenário, não se estranha que, na TVI, um programa, "A Bela e o Mestre", seja uma desgraça monumental. O "apresentador", esse, revela-se o mimetismo da imbecilidade galopante. Carrega no riso, soletra dificultosamente pequenas frases, formula horrores convencido de que faz filigranas. As raparigas que lá aparecem expõem alegremente as coxas e apresentam currículos profissionais adequados às capacidades. Boas de perna, más de meninge. No "Diário de Notícias", Fernanda Câncio, com inclemente crueldade, caustica as oito meninas, subordinando-as a este título medonho: "Nascidas para Ignorar".
Realmente, as meninas são fragorosamente ignaras. Riem muito e exteriorizam as suas pequeninas ambições trocando a parda chatice do espírito pela jubilosa tentação das pernas e dos seios. O "apresentador" demonstra alucinante contentamento, facilmente explicável: os tolejos delas constituem a imagem devolvida da sua pessoal cretinice.
Estas manifestações de debilidade mental pouco ou nada me espantam. Gerações de matóides, sucederam-se a gerações de mentecaptos. O País foi assaltado por levas e levas de gente inepta, e não só nos Governos consecutivos. O apelo aos mais rasteiros instintos chegou, até, a amarinhar pela RTP, onde alguns dos mais tremendos "formatos" tiveram calorosa guarida. Os responsáveis dessa miséria continuam impunes. A dança dos directores de jornais não é de hoje. Logo a seguir a Abril, os Governos colocaram pessoas da sua confiança na Imprensa, na Rádio e na Televisão estatal. Foi o que se viu: sargentos políticos converteram a criatividade, o talento, uma certa dose de anarquia, comum às grandes Redacções, numa ordenança burocrática, sob o império do servilismo. Todos os partidos, todos, são culpados de manobrismo e manipulação. Consoante a valsa dos partidos, assim se bailava nos postos directivos e afins. Não se inquiria sobre o talento do recém-vindo; pedia-se-lhe o cartão do partido. Houve um local que chegou a registar sessenta "chefes" na prateleira.
Aquele desgraçado "A Bela e o Mestre" reflecte um País em colapso. E o colapso é de natureza cultural e não, exclusivamente, de ordem económica, como pretendem fazer-nos crer. O amolecimento moral dos portugueses só é proveitoso para o grupo possidente. A crítica ao poder deixou de existir. O que se combate é o Governo, ou os Governos, mesmo assim com a subtileza dos que esperam, um dia destes, ser beneficiados com sinecuras. O poder deixou de estar nas mãos dos Governos. Quem manda são os grandes grupos económicos. Basta reparar nos governantes que estiveram, estão e irão, certamente, estar nas grandes empresas privadas: banca, seguros, energia, saúde, educação. A análise do "sistema" ausentou-se dos media. E aqueles que ousam beliscar, ao de leve, o corpo coriáceo desse "sistema" pagam caro a pessoal exigência de rigor e de honestidade.
Dilectos: podem crer que sei do que falo. E, às vezes, interrogo-me: até quando?
In "Jornal de Negócios" de 16 de Março de 2007