Se Portugal e o Brasil têm o direito de possuírem ortografia própria, por que razão é que Angola, Moçambique e os outros países lusófonos também não a hão-de ter, até ficarmos «orgulhosamente sós»?
E qual é a língua que resiste a oito ortografias?
E não venham com o argumento ingénuo de que certas palavras ou acentuações estão de tal maneira radicadas, que seria violência cultural inadmissível alterá-las... Para resolver isto, não existem já na ortografia actual as formas duplas como ouro e oiro, cota e quota, etc. (como acontece também em outras línguas)?
Incomodam-se uns tantos com a hipotética influência que a alteração da grafia pode ter na língua. E, se tiver, é isso mais grave que a pluralidade das ortografias? A hipótese é tão mesquinha quanto é certo que determinados países, como a Albânia, a Turquia e o Vietname, trocaram os seus alfabetos pelo latino, deixando, respectivamente, os seus caracteres gregos, árabes e chineses, sem que as suas culturas sofressem com tão radical mudança. Nesses países não acabaram os poetas, nem os romancistas, nem deixaram de se publicar e de ler livros e jornais, nem aconteceram desgraças culturais — antes encontraram veículo mais adequado para a sua expansão e expressão.
Também é de lamentar o desconhecimento ou a chantagem que se faz confundindo língua com ortografia, como se fossem realidades inseparáveis.
A ortografia é tão-somente, segundo o linguista Herculano de Carvalho, autoridade bem reconhecida, a «forma de representar correctamente por escrito a palavra falada de uma dada língua, por meio de um dado sistema de sinais gráficos de natureza alfabética (letras, grafemas)».
A grafia ou ortografia não condiciona a língua, nem o estilo, nem as liberdades literárias, gráficas ou outras que os escritores usam a seu bel-prazer — desde o eliminar a pontuação, a translineação, o fazer de todo um capítulo ou livro um parágrafo único, até à construção ou desconstrução das palavras…
A mesma ortografia serve e respeita as diversas variedades nacionais, regionais ou ideoletos da língua comum.
O inexplicável ciúme em relação aos brasileiros, que chegou a acusar os membros da delegação portuguesa que subscreveu o presente Acordo de "traidora" por cedências ao Brasil — por exemplo, na questão da supressão das consoantes mudas — , ignora (?) que, já em 1746, o português Luís António Verney, no Verdadeiro Método de Estudar, em carta-capítulo dedicada à ortografia, defende, como nos acordos ortográficos modernos, que a ortografia deve seguir a pronúncia, mas com excepções. Seguindo esse mesmo critério, era da opinião de que se deviam suprimir as consoantes duplas quando uma não se pronunciava, a começar pelas dobradas; e que essa regra se aplicava também aos grupos: «Passando ao B, digo que esta não se deve conservar senão naqueles nomes que especialmente a têm na pronúncia, como obstáculo, obstante, etc., mas naqueles que hoje se pronunciam sem ela, parece-me escrúpulo demasiado.»
E quanto ao tão falado caso do ato, em palavra em que a ditongação não se ouve (e a situação de acto é semelhante), Verney sentencia: «Ato é mui boa palavra e todos a entendem!»
E que dizer, em relação à hipótese que foi muito discutida e objecto de grande gáudio humorístico, em 1968, de várias supressões do H, incluindo a palavra homem (a honra machista!)? Verney afirma: «Não condeno quem escreve Homero, Heródoto, Heródes, etc., ainda que estes três, e outros semelhantes que estão já muito em uso, podem mui bem escrever-se sem H, o que até os nossos italianos já fazem.»
Servem estes exemplos do Verdadeiro Método para mostrar que os brasileiros não podiam antecipar-se aos portugueses sobre os aspectos ortográficos em apreço, pois a sua literatura — segundo a mais abalizada opinião, a de António Cândido — começou por volta de 1750, e a primeira gramática que elaboraram, A Língua Nacional, de António Pereira Coruja, é de 1835, bem depois das propostas de Verney. Se a cronologia servisse para esta guerrilha, haveria que afirmar que os brasileiros aprenderam alguma coisa de Verney…
Uma notável singularidade desta segunda vaga da discussão sobre o Acordo Ortográfico consiste em ela se processar como se ainda estivéssemos em 1968. É que, agora, o Acordo já está aprovado pela Resolução da Assembleia da República n.º 26/91, em 4 de Junho, na presidência de Vítor Crespo e proposto por ela, para ratificação, ao presidente Mário Soares, que o fez em 4 de Agosto de 1991, encontrando-se publicado no Diário da República I série-A, n.º 193 de 23/8/1991. O que se debate agora é a sua entrada em vigor, em conformidade com o que os países lusófonos resolverem, em questão de prazos, apoios, etc.
Que sentido tem proporem-se alternativas ao disposto em diversas bases, até porque não passam de alternativas?
Considerando a discussão que se tem travado até aqui, é de lamentar que não se tenham debatido os aspectos didácticos e pedagógicos da prática do Acordo nas escolas, os custos reais de uma perda de vendas das editoras na área dos manuais de ensino da língua (mas não da Matemática, História, Física, etc.), perdas essas compensadas (em que medida?) pelas vendas maciças de dicionários, prontuários, glossários, etc., com realização quase imediata do capital investido, quando o Acordo entrar em vigor.
E, envolvendo tudo isto, porque não se gastam antes energias em discutir uma verdadeira política da língua no país e no estrangeiro, tanto mais que o actual contexto é multicultural, com não poucos problemas de multilinguismo?
Como é possível gastarem-se tantas energias a combater moinhos de vento?
Ver vídeo aqui.
texto (versão integral) publicado no caderno Actual do semanário português Expresso de 25 de Abril de 2008, sob o título Oito ortografias?