O recenseamento da população angolana – pela primeira vez desde a independência do país, em 1975 – como pano de fundo desta crónica do autor, a propósito do que pode resultar a troca de duas palavras idênticas apenas na sua homofonia.
O processo de cadastro da população e das suas habitações [em Angola] aconteceu em Maio, mas até agora, apesar de toda a divulgação sobre o assunto, muitos ainda não perceberam, de concreto, as razões por que os inquiridores andaram a deambular por todos os cantos de Angola.
Para muitos, os ‘inquiriquês’, como também são por aqui chamados, andaram de casa em casa a registar as pessoas para, depois de algum tempo, receberem casas, empregos, escolas, enfim.
Em alguns casos, os inquiridores tiveram sérias dificuldades, porque muitas famílias pensavam que se tratava de um processo depois do qual as pessoas seriam desalojadas. Mas era normal esse ‘medo’ e confusão. Com a onda de demolições feitas pelo Governo Provincial de Luanda, em que as pessoas perderam “grandes casas” e “casas grandes”, ninguém mais quis ouvir falar de visitas estranhas.
Ainda assim, segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), grande parte da população foi registada. E o que li num dos nossos semanários, durante uma entrevista a um dos responsáveis do INE, é que «houve êxito durante o processo graças ao bom censo da população que soube comportar-se».
Apesar dos casos de violações transmitidos por alguns órgãos não houve tumulto nem grandes constrangimentos. Mas diga-se, não foi graças ao bom censo das pessoas. Eu não fui recenseado, mas não foi porque eu não tive bom senso.
Durante o censo (da População e da Habitação), muita gente de bom senso ficou em casa à espera que os recenseadores aparecessem. Mas nem aos fins-de-semana apareciam. Isso sim é que foi abusar do bom senso das pessoas que esperavam participar no censo.
Senso e censo são homófonas – palavras que têm a pronúncia igual, mas com grafias e significados diferentes. Senso (do latim sensu) significa compreensão, faculdade de julgar, raciocínio, entendimento. Já Censo (também do latim censu) significa numeração estatística dos indivíduos, empresas, habitações ou de outras características de interesse de um país. É o mesmo que recenseamento. Para um bom censo (=recenseamento) espera-se bom senso (= critério são) das pessoas.
texto publicado no semanário luandense Nova Gazeta, no dia 2 outubro de 2014, na coluna do autor, Professor Ferrão, com o título original «É uma questão de bom 'censo'». Manteve-se a grafia anterior ao Acordo Ortográfico, seguida ainda em Angola.