Ligar dá ligação, de absolver forma-se absolvição... e, com discutir, forma-se "discutissão" (ou "discutição"), certo? Erradíssimo, diz Edno Pimentel, em mais uma crónica sobre o português de Angola, na coluna "Professor Ferrão" do jornal Nova Gazeta (texto original publicado em 24/10/2013).
Todos estavam ávidos pela chegada de mais uma sexta-feira. Os rapazes prepararam a bola, o equipamento e chuteiras improvisados e a cal para a demarcação do campo no bairro. As meninas, que não quiseram ficar de fora da diversão, recolheram garrafas e juntaram montes de areia para brincar às ‘garrafinhas’.
Mas quer no futebol quer nas garrafinhas, os cabeças eram muito selectivos e escolhiam sempre os melhores. Aqueles que nunca se destacavam eram atirados para o ‘apanha-bolas’, no futebol, ou para o ‘bonga’, nas garrafinhas. E isso, em alguns casos, desanimava as mães que, às vezes, assistiam às brincadeiras dos filhos. Algumas chegavam mesmo a interferir no jogo dando sugestões das melhores posições dos seus jogadores e, com alguma batota, forçavam a vitória.
Desta vez, atiraram para o bonga – a posição fora de campo desfavorável aonde iam as jogadoras menos habilidosas – Donana, filha da tia Minga, uma das meninas que sempre proporcionou mais vitórias ao grupo. No seu lugar, entra Emília, filha da vizinha Rosa, a quem fora incumbida a responsabilidade de defender e conquistar mais uma vitória.
No fim das 10 rodadas, a equipa recordista perdia a 2-8, o que desagradou a todos da equipa e, principalmente à tia Minga que já não conseguia esconder mais o seu descontentamento.
«Por que não põem de novo a Donana? Desde que essa boela entrou a equipa não está a marcar pontos!», rabujou tia Minga. «Vai só fazer as outras perder o jogo», acrescenta.
«Quem é que é boela?», retorquiu vizinha Rosa. «Você acha que a tua filha é a única que deve jogar, não é?», zanga-se. «Por ser muito sabichona, é que todos os rapazes aqui já…»
«Eh, eh, eh. Chega! Não quero mais discutissão», interrompe tia Minga. «A conversa aqui é do jogo e não de outras coisas». «Então não foi você que começou», acusa tia Rosa.
De qualquer forma, sempre que pudermos, vamos evitar discutissão. Como disse a Avó Suzana, mãe da tia Minga, «essa é conversa de criança e vocês já são família. Devem evitar essas coisas».
E ela tem toda a razão. Deve evitar-se discutissão. Não é que não possamos discutir, mas com respeito e cuidado com as palavras para não magoarmos nem nos arrependermos depois.
O que se sugere é que as pessoas, os adultos, e não só, mantenham uma ‘discussão’ amena, através da qual consigamos transmitir aos mais novos alguma experiência, incluindo a forma de se expressar. Não devemos pensar que por possuir ‘t’ no seu radical, ‘discutir’ forme o nome ‘discutissão’. Não!
O acto ou efeito de discutir é ‘discussão’, do mesmo modo que o de ‘transmitir’ é ‘transmissão’ e o de permitir ‘permissão’.
In jornal Nova Gazeta, de Luanda, publicado em 24 de outubro de 2013 na coluna do autor, Professor Ferrão. Manteve-se a grafia anterior ao Acordo Ortográfico, seguida ainda em Angola.