Enxameiam os termos ingleses, no novo Dicionário, dito da Academia. Vi badge e blues, bluff e copyright, design e stick, stock e stop, stress e striptease. Em nenhum caso as transcrições no alfabeto fonético internacional coincidem com as que são dadas pelo The Oxford English Reference Dictionary, ed. Judy Pearsall e Bill Trumble, Oxford University Press, 1995. E então compreendi tudo: a Academia resolveu ir em socorro da Loira Álbion com um dicionário de pidgin (a transcrição de pidgin também diverge...) que criou as suas próprias modalidades de pronúncia paroquial, um variegado "buquê" entre o Kitsch piroso e a possidoneira tonta. Mas, se o "dossiê", mesmo com pronúncia carregada à moda do Porto, fosse só isso...
Diz a "Introdução" que, "seguindo a tradição dos dicionários académicos anteriores, as acepções das palavras são abonadas ou atestadas pelas autoridades da língua" e que por isso se utiliza na obra "um vastíssimo número de autores contemporâneos (sécs. XIX e XX), portugueses, brasileiros, africanos e outros".
O dicionário desvirtua a própria tradição que invoca.
Mete no mesmo saco autoridades da língua e uma caterva de utentes dela que não o são, nem de perto nem de longe.
Por esta capciosa confusão, não se encontram nas suas fontes documentais nem Gil Vicente, nem Bernardim, nem Sá de Miranda, nem Barros, nem António Ferreira, nem Camões, nem Jorge Ferreira de Vasconcelos, nem Mendes Pinto, nem o Padre Bernardes, nem o Padre Vieira, nem tantos outros que escreveram até fins do século XVIII. Apenas ficou D. Francisco Manuel de Melo, certamente por lapso vicioso. Mas também no nosso século há pérfidas omissões, como as de Guimarães Rosa, Drummond, João Cabral, Alexandre O'Neill... Diz-se ainda que, das palavras do vocabulário clássico e arcaico, são registadas "as que, embora não tendo sobrevivido até à actualidade, apresentam uma certa importância cultural, como reflexo dos objectos ou conceitos que outrora designaram". Mas não se encontra uma boa porção de termos de Os Lusíadas, como, p. ex., "anafil" (I, 47), "equóreo" (IX, 48), "fota" (II, 94), "profligado" (X, 20), "quadrupedante" (X, 72), "trasunto" (X, 79). Da Lírica, também não constam, p. ex., "estígio" (soneto "Está o lascivo e doce passarinho") e "podalírio" (ode ao conde do Redondo). D. Francisco Manuel de Melo, o tal que escapou miraculosamente à razia, não tem melhor sorte. Fui ver "caorzada", que o Melodino emprega no sentido de "soneto" naquele cujo incipit é: "São dadas nove. A luz e o sofrimento." Não vem.
O dicionário desmente-se a si mesmo. Afinal, só reconhece a "importância cultural" da certidão de óbito. Nessa veleidade totalitária, é barbeado à máquina zero tudo o que não se conformar com o seu Diktat modernaço.
Uma opção dessas não é uma opção. É uma aberração e uma estupidez. Será concebível qualquer bom dicionário espanhol, francês, inglês que não proporcione o acesso a Cervantes, a Ronsard, a Shakespeare? Será normal que se dê a etimologia, grega, latina ou outra, para um vocábulo e, havendo abonações, que se omita o seu uso pelos maiores escritores da Língua? Que se espere que a maioria das pessoas interessadas tenha de recorrer pelo menos a dois dicionários? Mas, por complexo de esquerda requentado ou dúbio recalcamento freudiano, o dicionário abomina o passado. Um só exemplo: em "varão", no sentido de homem valoroso ou ilustre, vai-se até Plutarco. Mas não se abona com "varões assinalados"... Livra: ainda lhe chamavam "reaccionário"!
Fui também aos autores que constam das fontes. O Garrett escreveu "cordura ousada" (Camões, I, VI). A "cordura" evaporou-se. Do Camilo, ocorreram-me "reinícola", "tabardão", "gasofilácio", "às canhas", "regambolear". Nicles. Do Aquilino, foi a vez de "coitanaxa". Salvo erro, é o Malhadinhas quem diz, às tantas, que da coitanaxa fez dona. Pois a coitanaxa tinha-se posto ao fresco, a ingrata. Procurei "mátria", termo tão prezado por Natália Correia. Viste-la. Mário de Carvalho emprega "ergástulo". Ó Mário, a palavra evadiu-se...
Já foi só por exercício sado-funerário que procurei, ao acaso, "alciónico", "anatocismo", "asinha" (até a Amália cantava "asinha"), "barinel", "catábase", "chacona", "fabiano" (referido ao socialismo da Fabian Society), "hetaira", "loxodromia", "paquife", "patena", "prelaciar", "tosão", "travertino", "venusino"... Foram dar uma volta. Mas há novidades suculentas que me deixaram "nocaute". Por exemplo, "missaia" com dois ss, falicamente abonado duas vezes por "mini-saia", com hífen. Ou, no verbete "pintura", a sensacional descoberta das "pinturas [sic] rupestres de Foz Côa"! Ou o prodigioso "despoletar", em que se afirma que tirar a espoleta impede o disparo ou a explosão e nos é dado um sentido e o seu exacto contrário: o de, tirando a espoleta, fazer deflagrar um mecanismo de explosão, que está certo, e o de impedir uma explosão ou anular uma tendência, que é uma autêntica bacorada.
Esta coisa bastarda tem ódio à língua portuguesa. Surpreende na tradição da Academia, mas diz lindamente com a nossa política de educação.
Publicado no jornal português "Diário de Notícias" em 23 de Maio de 2001.