A linguagem figurativa caracteriza-se por uma especial capacidade de criar evocações, impressões, sugestões. Esta passagem da Manhã Submersa exemplifica essa capacidade criadora.
Na expressão «ácida lucidez» não parece estar presente nenhum efeito contraditório traduzido por uma antítese ou oxímoro, pois a lucidez não é contrariada no seu pleno significado pelo adjectivo ácida, pelo contrário: este adjectivo acentua, evidencia a plena lucidez da personagem.
Lucidez significa «clareza de raciocínio», «brilho», «qualidade de quem é lúcido»; é palavra derivada precisamente de «lúcido», que em latim significava «claro, brilhante, luminoso, cheio de luz, manifesto». Ácido como adjectivo significa «azedo», «amargo», «acre», «que tem sabor ou cheiro semelhante ao do limão ou do vinagre», mas também «que tem as propriedades dos ácidos». Ora, entre as propriedades dos ácidos pode referir-se o facto de atacarem os objectos, corpos ou tecidos com os quais estão em contacto, de penetrarem neles, sendo por vezes cáusticos violentos.
Considero, assim, que estamos perante uma sinestesia, que consiste na fusão de diversas impressões sensoriais. O adjectivo ácida remete para a sensação olfactiva, para a gustativa e para a táctil (no contexto, sobretudo para estas últimas). O substantivo lucidez está relacionado com a visão, ainda que metaforicamente. O indivíduo lúcido é o que tem ou descobre a luz, o que «vê». Assim, a personagem vê claramente o que está a acontecer, e essa lucidez, essa visão clara da situação, contém em si uma sensação acutilante, ácida, amarga: nada está adocicado, nada está suavizado, pelo contrário, a dimensão aguda, aflitiva, da situação está bem presente diante dos seus olhos.
Muito obrigada pelas suas gentis palavras.