Sobre a origem do nosso vocábulo quiproquó há várias explicações, nem sempre convergentes….
Para tentar encontrar a verdadeira raiz da palavra, é talvez necessário remontar à velhinha gramática latina. Os pronomes latinos, tal como os substantivos e os adjectivos, eram declinados, ou seja, mudavam de forma consoante a função que desempenhavam na frase; além disso, tinham três géneros: masculino, feminino e neutro. Entre os pronomes que primeiro aprendemos e que mais usamos em qualquer língua contam-se aqueles que se referem à identidade ou à natureza de pessoas e coisas: que, qual, quem em português. Em latim, esta família de pronomes era representada, no nominativo singular (ou seja, no caso que corresponde ao sujeito), por ‘qui’ ou ‘quis’ no masculino, ‘quæ’ no feminino e ‘quod’ ou ‘quid’ no género neutro.
As duas formas do género neutro não se usavam indiferentemente: ‘quod’ funcionava como um adjectivo (‘quod templum vidisti?’ = que templo viste?), ao passo que ‘quid’ era um verdadeiro pronome (‘quid vidisti?’ = que viste?).
No entanto, a influência das línguas nacionais emergentes, nalgumas das quais ‘quid’ e ‘quod’ correspondiam ao mesmo vocábulo (como é o caso do português), aliada à falta de contacto assíduo com a boa latinidade, terá levado muito boa gente a baralhar os dois termos, sobretudo na linguagem falada.
Encontrei uma prova dessa confusão numa edição da obra completa de São Boaventura (1221-1274), o Doutor Seráfico, realizada no final do século XIX (Opera Omnia S. Bonaventurae, Ad Claras Aquas, 1882, Quaracchi). Na ‘Conclusio’ dos seus ‘Commentaria in quatuor libros sententiarum magistri Petri Lombardi’, escreve o famoso doutor da Igreja a páginas tantas (vol. I, p. 406): «[…] quia non habebant quid responderent» (= porque não tinham que responder). Esta pequena frase, embora inócua, gerou, da parte do editor, um comentário de suma importância. Dizem os irmãos Quaracchi em nota de pé de página: «fide mss. et ed. 1 post habebant substituimus quid pro quod.» (= confiando nos manuscritos e na primeira edição, substituímos quod por quid).
Ou seja, nos manuscritos e na primeira edição estava bem (‘quid’), mas em edições posteriores lá vinha erradamente ‘quod’ em vez de ‘quid’. Os vocábulos, portanto, andavam baralhados nas penas de alguns autores, e certamente na boca de quem ainda falava latim. Umas vezes diziam ‘quod’ quando deveriam dizer ‘quid’, e noutras ocasiões aplicavam ‘quid’ no lugar de ‘quod’. Talvez este segundo caso fosse mais frequente que o primeiro, o que explicaria a expressão ‘quid pro quod’, ou seja, «‘quid’ em vez de ‘quod’», ou, traduzido de outra forma, «‘quid’ onde deveria estar ‘quod’». Daí que José Pedro Machado escreva com toda a propriedade no seu Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa (4.ª ed. 1987): «quiproquó: Da loc. do lat. escolástico ‘quid pro quod’, com que se pretendia dizer que alguém tomara um ‘quid’ por ‘quod’.»
Com o decorrer dos tempos, foi-se perdendo a origem da expressão, e os gramáticos acabaram por a considerar incorre(c)ta, dado que a preposição ‘pro’ rege ablativo, e o ablativo de ‘quod’ é 'quo'. A locução “corre(c)ta” seria, portanto, ‘quid pro quo’, e foi esta que os puristas começaram a impor. Esquecida a proveniência da locução, que tinha essencialmente que ver com a troca de ‘quod’ por ‘quid’, ou seja, com um erro gramatical, foi-lhe dada uma interpretação mais lata, e ‘quid pro quo’ passou a ser traduzir-se por «uma coisa em vez de outra».
Para ajudar à festa, os farmacêuticos de antigamente, a quem chamavam boticários, nem sempre dispunham dos ingredientes necessários à elaboração dos medicamentos receitados pelos médicos, e a forma como se desenvencilhavam acabou por contribuir para difundir a locução de que estamos a tratar. Diz Bluteau no seu dicionário (1720): «Os Boticarios tem hum livro, a que chamão com termos Latinos, Quid pro quo. Quando não tem hua droga, achão nelle outra, para porem em seu lugar. Daqui veyo o dizerse, Livrenos Deos de hum Quid pro quo; porque às vezes há erro nas drogas, & em lugar de mezinha, dão os Boticarios veneno.» José Pedro Machado, na obra já referida, corrobora esta notícia: «O emprego frequente de ‘qui pro quo’, no sentido de “erro cometido num remédio”, na linguagem dos boticários nos séculos XVII e XVIII, foi decisivo na difusão desta locução tornada vocábulo.»
Ou seja, o ‘quid pro quod’, ou troca dos escolásticos, acabou por ganhar sentido pejorativo, devido à incúria de alguns boticários, cujas trocas eram nocivas ou mesmo letais. Em Inglaterra, talvez por os boticários serem mais conscienciosos, não seriam tão frequentes os “quiproquós” na hora de elaborar os medicamentos. Por isso mesmo, o ‘quid pro quo(d)’ não seguiria a mesma evolução naquelas paragens e acabaria por se infiltrar em terrenos jurídicos, onde ganhou o sentido de «troca equitativa». Se quiséssemos “traduzir” o ‘quid pro quo(d)’ anglo-saxónico por outra expressão latina que não tenha sofrido a erosão dos séculos, poderíamos recorrer à famosa máxima ‘do ut des’ (= «dou, para que dês»), que caracteriza toda a essência do verdadeiro acto comutativo.
A passagem de ‘quid pro quod’ a quiproquó em português explica-se facilmente pela queda da consoante final de ‘quid’ e ‘quod’, que na pronúncia mal se fazia sentir. No entanto, poderá ter havido aqui uma evolução paralela a partir da locução “substituta” ‘quid pro quo’.
Resumindo tudo isto: o ‘quid pro quo(d)’ britânico é de longe preferível aos quiproquós lusitanos, hispânicos, italianos e franceses, sejam eles cometidos por farmacêuticos (o que é raríssimo nos tempos que correm) ou por gente de outros ofícios (o que se vai tornando cada vez mais frequente)…