São muito interessantes, prezado consulente, as considerações que faz a respeito do emprego do advérbio sobretudo, e concordo consigo quando afirma que os contextos é que determinam qual a melhor construção a utilizar. No entanto, considero totalmente válido tudo o que afirmei na resposta que critica, como passo a explicar.
1.º O advérbio é uma palavra modificadora que pode referir-se ao verbo, mas também a um adjectivo, a um outro advérbio, a um substantivo ou a uma declaração inteira, exprimindo as circunstâncias de uma acção, estado ou qualidade.
2.º Repare-se que, na citação transcrita, Rodrigo de Sá Nogueira refere a colocação dos advérbios apenas em relação ao verbo, defendendo que “nunca se separam por vírgulas”, mas tem o cuidado de acrescentar “a não ser quando haja alguma intercalação”.
3.º E, na perspectiva de que os advérbios qualificam ou determinam as ideias dos verbos, é natural que se defenda que, por princípio, não devem separar-se por vírgulas os advérbios dos respectivos verbos, por analogia com o que acontece a respeito dos adjectivos e respectivos substantivos.
4.º No entanto, são inúmeras as situações em que o advérbio aparece isolado por vírgulas: ou porque o advérbio diz respeito a toda a declaração (e não apenas a uma palavra ou ao verbo), ou porque inicia uma frase exprimindo uma conclusão do anteriormente dito, ou para que não fiquem separados os termos essenciais ou os integrantes de uma oração, ou para que haja clareza na frase, ou para evidenciar um determinado aspecto.
5.º Dos inúmeros exemplos que poderia dar-lhe, seleccionei alguns da obra Os Maias, de Eça de Queirós (Edição “Livros do Brasil”, Lisboa). Procurei diferentes advérbios em situações diversas, para um melhor esclarecimento:
1. “Fora, as pancadas sucessivas da chuva batiam a casa (...).” (pág. 45)
2. “Enfim, um anjo depenado e sovado.” (pág. 77)
3. “Carlos, naturalmente, não tardou a deixar pelas mesas (...)” (pág. 90)
4. “As férias, realmente, só eram divertidas para Carlos quando (...)” (pág. 92)
5. “Depois de Coimbra, naturalmente, sondei-a a respeito de vir viver para Lisboa, confortavelmente, com uns dinheiros largos.” (pág. 104)
6. “(...)enfim, fazia parte da primeira folha de planta (...)” (pág. 111)
7. “Daí a dez minutos apareceu, bruscamente: e já com outra voz (...)” (pág. 135)
8. “Carlos, muito seriamente, aconselhou-lhe que tirasse o espelho.” (pág. 147)
9. “– Ali – disse o Ega, alegremente, apontando para o leito.” (pág. 147)
10. “Carlos, tranquilamente, ofereceu dez tostões.” (pág. 155)
11. “Isto é, verdadeiramente, conheci-a a bordo.” (pág. 158)
12. “Então, tendo assim, pela influência do seu banco (...)” (pág. 167)
13. “Já o fino dr. Teodósio lhe dissera um dia, francamente: (...)” (pág. 187)
14. “As suas doentes, fatalmente, fazem-lhe olho!” (pág. 187)
15. “E ele, então, refugiava-se todo nesse livro (...)” (pág. 187)
16. “Nesse domingo, justamente, deviam ir às colchas, ao Lumiar.” (pág. 191)
17. “E em Lisboa, realmente, era exacto.” (pág. 192)
18. “–Anteontem, toda a noite, a pé firme, das dez à uma, estive a ouvir a história (...)” (pág. 197)
19. “Mas, infelizmente, Santa Olávia era longe, tão longe.” (pág. 202)
20. “Justamente, dias depois, no Ramalhete (...)” (pág. 211)
21. “(...) pôs o papel diante dos olhos de Carlos, largamente, como um sudário desdobrado.” (pág. 212)
22. “Perfeitamente, sou todo vosso...” (pág. 215)
23. “(...) Cruges só, entre as duas velas do piano (...) improvisava para si, melancolicamente.” (pág. 216)
24. “Cruges, pesado dos ovos com chouriço, olhava, vaga e melancolicamente, as ancas lustrosas dos cavalos.” (pág. 222)
25. “Depois, era possível que daí a pouco (...)” (pág. 223)
26. “(...) e, muito simplesmente, à inglesa, ela estender-lhe-ia a mão...” (pág. 223)
27. “E dali olhava, enlevadamente, a rica vastidão de arvoredo cerrado (...)” (pág. 232)
28. “Toda a manhã andara ali, vagamente, pendurando sonhos dos ramos das árvores.” (pág. 235)
29. “E, ternamente, apanhou-a” (pág. 237)
30. “Uns preferem fedor de sarjeta; perfeitamente, destape-se o cano público...” (pág. 249)
31. “Felizmente, cheguei eu, e lembrei-me logo de ti...” (pág. 258)
32. “Também, irem a Queluz com um dia destes!” (pág. 258)
33. “Baptista, logo, discretamente, retirou-se, cerrando o reposteiro.” (pág. 269)
34. “Fora, a chuva continuava seguida e monótona (...)” (pág. 271)
35. “Ega olhou-os a ambos, sucessivamente, petrificado.” (pág. 274)
36. “Mas levanta-te, depressa!” (pág. 280)
37. “Eu tinha ficado a pé, naturalmente, até ao fim do baile (...)” (pág. 283)
38. “Então o amante da criatura interveio, ameaçadoramente.” (pág. 289)
39. “Instintivamente, Carlos, de vez em quando, ia despertar as lâmpadas.” (pág. 291)
40. “– O Castro Gomes, ontem, perguntou-me o que te havia de mandar (...)” (pág. 293)
41. “Insensivelmente, irresistivelmente, Carlos achou-se com os lábios nos lábios dela.” (pág. 297)
42. “Ela, bruscamente, voltou-se (...)” (pág. 298)
43. “Depois, sentou-se largamente no sofá (...)” (pág. 298)
44. “O conde, modestamente, protestou.” (pág. 298)
45. “Depois, distraída e melancolicamente, perguntou notícias desse devasso do Ega.” (pág. 303)
46. “Carlos olhou, casualmente; e viu (...)” (pág. 305)
47. “Desde o Ramalhete viera assim governando, irritadamente, sem descerrar os lábios.” (pág. 312)
48. “Outro municipal intrometeu-se, brutalmente.” (pág. 313)
49. “Mas ele, realmente, não podia apresentar um cavalo decente (...)” (pág. 315)
50. “E não estava também aquela que os olhos de Carlos procuravam, inquietamente e sem esperança.” (pág. 317)
51. “(...) levou-lhe a mão aos lábios, fidalgamente.” (pág. 319)
52. “(...) disse Carlos, vagamente, erguendo-se (...)” (pág. 319)
53. “E a cada frase, sacudia os ombros, furiosamente.” (pág. 323)
54. “por entre o alarido vibravam, furiosamente, os apitos da polícia.” (pág. 325)
55. “(...) era o secretário de Steinbroken, chegando, subtilmente, a tomar também parte no saque à bolsa do Maia.” (pág. 334)
56. “(...) – foram de novo os gritos isolados, aqui, além. (pág. 336)
57. “Mas uma indiferença, um tédio lento, ia pesando outra vez, desconsoladoramente.” (pág. 337)
58. “Ele aproximou-se, enfim, contrariado.” (pág. 339)
59. “Carlos, então, muito secamente, declarou toda essa invenção insensata.” (pág. 339)
60. “Levemente, com a ponta dos dedos, Maria Eduarda arranjou-lhe o pequenino laço de seda (...)” (pág. 354)
61. “O dr. Chaplain? Justamente, Carlos conhecia muito bem o dr. Chaplain.” (pág. 357)
62. “Porque, realmente, não havia em toda a Terra um entusiasmo (...)” (pág. 359)
63. “(...) Dâmaso estava saudando a senhora condessa, gravemente, funebremente.” (pág. 363)
64. “Agora, justamente, estava ele muito embaraçado (...)” (pág. 384)
65. “A condessa, infelizmente, mal tinha saído durante o tempo que estivera no Porto.” (pág. 390)
6.º Quanto ao advérbio sobretudo, transcrevo estes dois exemplos da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira: «Estes religiosos tinham por encargo, sobretudo, palpar o ânimo do novo imperador... quanto à mudança de costumes e recebimento do patriarca católico», Aquilino Ribeiro, Constantino de Bragança, cap. 10, p. 155; «E, sobretudo, nenhum desses amores houve a candura deste, a sua graça de mocidade em flor», Afonso Lopes Vieira, Amadis, VI, 52.
7.º Analisando agora a frase original que me foi apresentada, reafirmo que:
a) Se colocar o advérbio no início da frase, deverá isolá-lo por vírgulas, pois essa colocação faz com que ele não diga respeito ao predicado “imagino”, mas seja como que uma conclusão do anteriormente referido ou diga respeito a toda uma ideia (como os exemplos n.º 2, 6, 12, 20, 22, 25, 31 e 32, acima);
b) Se colocar o advérbio após o verbo, então, defendo que ele deverá ficar isolado por vírgulas, de modo a tornar a frase mais clara e a não separar o predicado do seu complemento directo. Na frase-tipo portuguesa, o complemento indirecto e o directo (termos integrantes de uma oração) devem estar pospostos ao predicado, e qualquer introdução de uma circunstância deverá, em princípio, estar isolada por vírgulas, contribuindo para uma maior clareza da frase. É o que se passa, por exemplo, nas frases n.º 24 e 27 acima.
8.º No entanto, prezado consulente, também não considero erradas as frases que construiu, já que, efectivamente, determinados contextos podem proporcionar determinadas construções. Mas a frase que a consulente Alda Serra me apresentou não tinha todo esse contexto; aliás, não tinha nenhum contexto. Assim, para aquela frase simples, sem contexto, mantenho a resposta que dei: por princípio, não se separa o complemento directo do seu predicado introduzindo circunstâncias ou, se forem introduzidas, isolam-se por meio de vírgulas, e, no caso concreto, se o advérbio “sobretudo” estiver colocado no início da frase, só beneficiará se ficar isolado por uma vírgula, por um lado, porque esse facto o realça (em vez de o desvalorizar, ao contrário do afirmado pelo nosso consulente) e, por outro lado, para evitar a confusão que adviria de estar junto do pronome “eu” com o respectivo destaque (como, aliás, se pode ver num dos exemplos dado por este nosso consulente).