Sara Mourato - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Sara Mourato
Sara Mourato
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Licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre em Língua e Cultura Portuguesa – PLE/PL2 pela mesma instituição. Com pós-graduação em Edição de Texto pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, trabalha na área da revisão de texto. Exerce ainda funções como leitora no ISCTE e como revisora e editora do Ciberdúvidas.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

O que significa a palavra degenerescência quando atribuída a uma raça?

Obrigado.

Resposta:

No sentido pretendido pelo consulente, degenerescência é o «ato ou efeito de degenerar; degeneração», isto é, a «perda ou alteração (no ser vivo) das qualidades da sua espécie; perda das características primitivas» (Dicionário Eletrônico Houaiss, Rio de Janeiro: Instituto Houaiss/Objetiva, 2001). Refira-se que às palavras degenerescência ou degenerar é-lhes associada, muitas vezes, uma carga racista ou negativa, sendo que são usadas tradicionalmente como forma de reprovar uma mudança ou alteração nas características e nos hábitos de um povo, por se considerar que se verificam danos em virtudes supostamente imutáveis.

Pergunta:

É correto dizer «comportamento misantropo»?

Obrigado.

Resposta:

Misantropo é usado como substantivo e adjetivo.

Por misantropo, como substantivo, entende-se «[a pessoa] que despreza a espécie humana e o convívio com outras pessoas» (cf. TemaNet – WordNets Temáticas do Português). Contudo, a palavra também ocorre como adjetivo com significado semelhante: «Conta-se que o Sr. Alexandre Herculano, a este respeito, dissera, com aquele espírito misantropo que a sua voz ríspida acentuava de um relevo amargo [...]» (Eça de Queirós, O Conde de Abranhos, 1925, in Corpus do Português). Nesse sentido, o «comportamento misantropo» é o comportamento que se tem relativamente à espécie humana (ex.: o seu comportamento misantropo advinha em parte a aversão que tem ao Homem), ou o comportamento social de determinada pessoa (ex.: o seu comportamento misantropo advinha em parte da sua timidez), pelo que a expressão é perfeitamente aceitável.

Pergunta:

Diz-se «recobrar ânimo», ou «recobrar o ânimo»?

Obrigado.

Resposta:

À semelhança de outros verbos que se combinam com o substantivo ânimo, com e sem artigo definido, tais como ter («ter ânimo/o ânimo»), encontrar («encontrar ânimo/o ânimo»), perder («perder ânimo/o ânimo»), faltar («faltar ânimo/o ânimo»), etc., também o verbo recobrar se pode combinar somente com «ânimo» ou com o grupo nominal «o ânimo».

Em corpora do português disponíveis na Internet, encontramos a ocorrência das duas expressões em apoio da resposta aqui dada:

«Tenta dormir e recobrar ânimo

«Nós iremos assim que ela recobrar o ânimo

Pergunta:

Atente-se na seguinte frase: «Arrependo-me de lhe ter dito toda a verdade.»

O uso da preposição de é correcto? Não seria mais correcto empregar a preposição por, que se utiliza em frases como «Ele ficou chateado comigo por eu não o ter convidado»?

Obrigado pela atenção.

Resposta:

Depois de arrepender-se, o uso da preposição de é correto.

O verbo arrepender é um verbo pronominal (arrepender-se) que rege geralmente a preposição de (cf. Winfried Busse, Dicionário Sintáctico de Verbos Portugueses, Coimbra, Livraria Almedina, 1994):

1. «Arrependo-me de lhe ter dito toda a verdade.»

2. «Poderá arrepender-se de ter optado por um PC Wintel.»1

Nos exemplos 1 e 2, apenas se apresentam casos em que a preposição introduz uma oração de infinitivo, mas também é possível associar-lhe expressões nominais e pronomes:

3. «Arrependeu-se dos seus pecados/disso.»

Está igualmente correta a regência construída com por, mas na expressão introduzida por esta preposição torna-se mais saliente o valor causal, sobretudo se se tratar de orações de infinitivo:

4. «Arrependo-me por lhe ter dito toda a verdade.»

5. «Poderá arrepender-se por ter optado por um PC Wintel.»

Em 4 e 5, a sequência introduzida por por revela-se ambígua do ponto de vista da sua análise, porque, embora possa aceitar-se como regência alternativa a de, também é legítimo considerá-la como uma expressão circunstancial (de causa).

1 Exemplo retirado do Corpus do Português, de  Mike Davies e Michael Ferreira.<...

Pergunta:

É aconselhável o uso da locução prepositiva «devido a» introduzindo orações causais reduzidas de infinitivo? Ex.:

«Não é bom que andemos de barco hoje devido ao mar estar bastante agitado...»

Resposta:

A frase em questão apresenta alguns problemas que condicionam a sua aceitabilidade.

Maria Helena de Moura Neves, no seu Guia de Usos do Português (São Paulo, Editora UNESP, 2003), considera que é legítimo o emprego da locução «devido a», sinónima de «em virtude de», «em razão de» e «por causa de», apesar de alguns normativistas não a aceitarem. Note-se, porém, que, seguindo-se à locução uma oração de infinitivo começada por uma expressão nominal introduzida por artigo definido («o mar», como acontece no exemplo em questão), seria de recomendar a não contração da preposição com o artigo; com efeito, se se escreve «em virtude de o mar estar agitado», então deveria ter cabimento desfazer a contração: «devido a o mar estar bastante agitado». Acontece que a não contração se afigura estranhíssima, o que poderá ser contornado de duas maneiras:

a) optando pela contração, o que significa fugir ao critério de separação no contexto em apreço – é a solução apresentada pelo consulente;

b) ou adotando outra construção: «devido ao mar, que está bastante agitado»; «devido à agitação do mar».

Do ponto de vista estilístico, a solução b) afigura-se preferível.