Nuno Carlos Almeida - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Nuno Carlos Almeida
Nuno Carlos Almeida
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Licenciado em Linguística (com Ramo de Formação Educacional) e mestre em Língua e Cultura Portuguesas (especializado em Metodologia do Ensino do Português LE/L2) pela Universidade de Lisboa. Leitor de português na Universidade de Zadar, Croácia (desde 2011). Autor do livro Língua Portuguesa em Timor-Leste: ensino e cidadania.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

O substantivo feminino correspondência, quando se trata de correspondência postal, pode ser usado no plural? Por exemplo: «O carteiro separa as correspondências.» Não se trata aqui de um falso plural?

Resposta:

Conjugando a informação do Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, com a do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, verificamos que uma das aceções do substantivo correspondência se refere à troca de escritos entre pessoas (ou instituições), nomeadamente de cartas, postais ou outro tipo de documentos, através de serviço próprio. Por extensão, usa-se também para designar o conjunto das cartas, postais ou outros documentos que são expedidos ou recebidos. Neste sentido, correspondência é um nome coletivo, para o qual o Dicionário Houaiss de Sinónimos da Língua Portuguesa propõe, como possíveis equivalentes, «cartas, mensagens» (assim, no plural). De facto, este substantivo é inclusivamente listado como um nome coletivo para «cartas, telegramas, postais», na recente Gramática do Português (Fundação Calouste Gulbenkian, 2013).

Porém, a designação do coletivo não tem obrigatoriamente de ser feita de modo genérico: é possível agrupar os elementos através de traços mais específicos, como acontece quando usamos os termos «correspondência comercial» e «correspondência eletrónica», ambos registados pelo Dicionário Houaiss, diferentes de «correspondência pessoal», acrescenta-se aqui, para dar mais um exemplo. Paralelamente, no mesmo dicionário podemos encontrar a seguinte definição de correio, por metonímia: «mala na qual são transportadas diversas correspondências».

Nesta lógica, é perfeitamente aceitável que se agrupem os elementos do coletivo tendo como critérios, por exemplo, o destinatário ou o endereço, fazendo com que a «correspondência do Carlos» seja diferente da «correspondência da Dóris», e a «correspondência do 2.º C» não seja a «correspondência do 2.º B». É por isso que o carteiro deve separar as correspondências e distribu...

Pergunta:

«Desolado, o pai também veio beijá-la e murmurou-lhe um pedido de desculpas por se ter exaltado. Não valia a pena revoltar-se perante fatos que ninguém poderia ter evitado e que já não podiam ser alterados.»

Neste parágrafo, onde se diz «ninguém poderia ter evitado», não será «ninguém podia ter evitado»?

Resposta:

Em resposta a esta questão, começo por dizer que a substituição de poderia por podia é possível mas não obrigatória, já que, em termos semânticos, o resultado não seria exatamente equivalente. Antes de ler a explicação que se segue, convido o consulente a consultar os Textos Relacionados, que poderão ser úteis para a resolução da sua dúvida, para além de servirem de complemento à resposta.

Consideremos a segunda parte do parágrafo original [a)], bem como o mesmo excerto alterado [b)]:

a) «Não valia a pena revoltar-se perante fatos que ninguém poderia ter evitado e que já não podiam ser alterados.»

b) «Não valia a pena revoltar-se perante fatos que ninguém podia ter evitado e que já não podiam ser alterados.»

Em a), o uso do condicional/futuro do pretérito convoca valores de probabilidade, suposição ou hipótese (isto é, valores modais não assertivos), que podemos tornar explícitos através da inclusão de novos elementos na frase, como nos seguintes exemplos:

«Não valia a pena revoltar-se perante fatos que [provavelmente] ninguém poderia ter evitado e que já não podiam ser alterados.»

«Não valia a pena revoltar-se perante fatos que [supostamente] ninguém poderia ter evitado e que já não podiam ser alterados.»

«Não valia a pena revoltar-se perante fatos que ninguém poderia ter evitado [a não ser que fosse possível alterar a ordem natural das coisas] e que já não podiam ser alterados.»

A opção pela formulação b) faria com que a interpretação do valor modal do segmento em análise fosse ambígua, uma vez que não poderíamos dizer inequivocamente se, por um lado, o uso do modo indicat...

Pergunta:

No livro Terra Sonâmbula, de Mia Couto, encontrei a seguinte passagem: «Os velhos nada falaram. Ficaram mastigando o tempo, renhenhando.»

Renhenhando estaria próxima de «apreciando»? Não encontrei tal palavra no Google, exceto presente na obra do próprio autor. Qual seria o seu significado?

Muito obrigado!

Resposta:

Depois de pesquisar em diversos dicionários, não encontrei qualquer referência ao verbo renhenhar. Assim sendo, proponho a descodificação do significado deste verbo com base no contexto em que ocorre, mas socorrendo-me também de algum conhecimento global sobre a obra de Mia Couto.

Observe-se [1], a passagem que o caro consulente refere, em Terra Sonâmbula, inserida num contexto um pouco mais alargado, e [2], um excerto do conto A Casa Marinha, onde encontramos o mesmo verbo:

[1] «Lá sentavam os mais velhos, de manhã até de noite. Eu queria ouvir suas antigas sabedorias. Disse-lhes que queria sair, juntar-me aos guerreiros naparamas. Os velhos nada falaram. Ficaram mastigando o tempo, renhenhando. Um deles, por fim, se abriu:
– Meu filho, os bandos têm serviço de matar. Os soldados têm serviço de não morrer. Nós somos o chão de uns e o tapete dos outros.»

[2] «O desremediado velho se dezembrava assim, para cá e para diante, todo concurvado enquanto pronunciava indecifráveis rezas. Me divertia aquele renhenhar dele, cabeça abaixo dos ombros, remexendo algas, conchas e troncos trazidos pelo mar de longínquas tempestades.»

Em [1], percebe-se que os velhos levaram algum tempo a pensar na resposta que haveriam de dar ao jovem Kindzu, o que indica que foi uma resposta refletida, cuidadosamente pensada, levando-nos a interpretar renhenhando como «refletindo, matutando». Já em [2], o contexto sugere-nos que renhenhar é como «sussurrar, murmurar».

Na obra de Mia Couto, é comum a presença dos velhos africanos, cujo discurso, detentor de sabedoria e feito de ensinamentos, é marcado pela lentidão, pelos silêncios, pelas longas pausas necessárias à reflexão, na tentativa de encontrar as palavras ...

Pergunta:

Para mim está claro o uso formal de quereria em orações subordinadas, por exemplo: «Se eu pudesse querer alguma coisa, quereria viajar.»

Tenho dúvidas no caso das solicitações: «Eu quereria falar com você.»/«Eu queria falar com você.»

Embora o uso da língua consagre a segunda opção, normativamente a primeira está correta? Ou este não é um caso de uso do futuro do pretérito e, sim, do imperfeito com sentido de atenuação?

Obrigada!

Resposta:

1.    A questão apresentada insere-se no âmbito do princípio da cortesia (também chamado de princípio da delicadeza ou da polidez), através do qual os falantes usam determinadas fórmulas ou estratégias linguísticas no sentido de minimizar o efeito descortês provocado por certos atos ilocutórios, nomeadamente os diretivos, como as ordens ou os pedidos.

2.    A utilização de formas verbais tanto no pretérito imperfeito como no futuro do pretérito (condicional) é apontada como um dos recursos possíveis para atenuar os aspetos negativos dos pedidos ou das ordens em língua portuguesa (cf. Gramática da Língua Portuguesa, de Maria Helena M. Mateus et al.; Gramática da Língua Portuguesa, de Mário Vilela; Introdução à Linguística Geral e Portuguesa, de Isabel H. Faria et al. (orgs.); Nova Gramática do Português Contemporâneo, de Celso Cunha e Lindley Cintra).

3.    Devo acrescentar que, depois de uma pesquisa complementar de textos em linha, apesar de ambos serem admitidos em ambas as variedades, fica a sensação de que o uso do pretérito imperfeito é mais comum no português europeu, enquanto o condicional é mais frequente no português do Brasil.

4.    Quanto ao verbo querer, não foi fácil encontrar referências ou exemplos que incluíssem especificamente este verbo conjugado no condicional, no entanto, na gramática de Vilela, entre alguns exemplos de processos indiretos de realização de pedidos, encontramos: «Eu quereria/queria falar com o chefe.»

5.    Assim sendo, respondendo muito concretamente à pergunta da consulente, também poderemos considerar normativamente correta a solicitação «Eu quereria falar consigo». Isto não significa, porém, que o resultado...