Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Alguns atos regulamentares (e até mesmo leis) no Brasil contêm, entre a epígrafe e o primeiro artigo, os fundamentos que levaram à sua edição. Tais fundamentos são constituídos por parágrafos e cada um deles se inicia pelo gerúndio do verbo considerar. Alguns autores denominam essa fundamentação de “consideranda”, porém, não encontrei em dicionários este termo. Minhas dúvidas a respeito são:

a) a expressão está correta?

b) se estiver, ela se refere a cada um dos parágrafos, ou ao conjunto?

c) alguns autores a utilizam como substantivo masculino plural. Está correto? (exemplo: no documento , a Seção 1 da Emenda).

Parabéns e muito obrigado por esse trabalho que há tempos vem sendo realizado em prol de nossa língua e do qual sempre me valho.

Resposta:

A forma dicionarizada é considerando, cujo plural é considerandos, como se pode confirmar no Dicionário Houaiss (ver também Dicionário de Português Michaelis):

«1 cada uma das reflexões, observações, razões ou motivos que se enumeram em parágrafos, como introdução ou prólogo a um documento (leis, decretos, sentenças, conclusões, propostas etc.), cada um deles principiando com a palavra considerando ou atendendo Ex.: ainda estão nos c[considerandos].

2 (1881) razão, motivo; argumento (mais us[ado] no pl[ural]) Ex.: sua idade, seu peso e outros c. levaram-no a desistir de correr.»

Pergunta:

Com relação a morfemas e morfes. Em que circunstância uma forma presa é empregada como uma forma livre?

Resposta:

Segundo o Dicionário de Termos Linguísticos, forma livre é:

«Morfema que, por si só, pode constituir uma palavra. Exemplos: mar; com; um

Uma forma presa é:

«Morfema que, por si só, não pode constituir uma palavra, sendo portanto, necessariamente, um constituinte de palavra. Numa acepção mais restrita, forma presa pode identificar apenas os significantes que se associam a outras formas presas, constituindo uma palavra. Exemplos: -sist-, consistir, insistir, desistir, resistir; -clar- em claro, clara; -mento-, aparecimento,
reconhecimento

Julgo que, quando se diz que uma forma presa se pode usar como livre, se pretende referir um processo de inovação lexical conhecido por truncação1, assim definido por Margarita Correia e Lúcia San Payo de Lemos, em Inovação Lexical em Português (Lisboa, Edições Colibri, 2005, pág. 44):

«Trata-se do processo pelo qual a forma de uma palavra se reduz, tornando essa unidade mais facilmente memorizável e utilizável. Exs.:

metro por metropolitano;

otorrino por otorrinolaringologista

Contudo, não se pense que o resultado deste processo é sempre um morfema. Na verdade, uma truncação pode não corresponder a uma unidade morfológica, mas sim a duas ou mais sílabas da palavra abreviada: como exemplificam Correia e Lemos (idem, pág. 45), «heli (abreviação de helicóptero) não corresponde a um dos elementos constitutivos, que é...

Pergunta:

Em uma análise de semas inerentes e aferentes de uma lexia, o que devo entender por desvios eufóricos ou disfóricos?

Resposta:

Um artigo disponível na Internet pode ser bem a resposta a esta dúvida. Trata-se de Seleção e Uso de Lexemas na Perspectiva da Geolinguística, de Roseli Silveira [consultado em 25/05/09].

Recorrendo ao conceito de sema («cada unidade mínima de significação, que, combinada com outras, define o significado de morfemas e palavras; traço semântico, componente semântico», Dicionário Houaiss) e apoiada nos trabalhos de F. Rastier, a referida autora distingue «dois tipos de semas: (i) inerentes, que são os traços específicos, recorrentes, que resumem relações reflexivas no seio de classes semânticas, e (ii) aferentes, que resumem relações não reflexivas entre classes, e podem ser produzidos por uma inferência (que traduz uma expectativa socializada)». No processo que leva à manifestação do lexema em discurso, «pode ocorrer a atualização de semas subjacentes que venham agregar-se aos já existentes, ampliando, reduzindo ou provocando desvios eufóricos/disfóricos no inventário dos semas». Ou seja, numa palavra, há traços de significação que, contextualmente, podem contribuir para uma interpretação mais positiva (eufórica) ou mais negativa (disfórica) dessa palavra.

Pergunta:

«Lúcia é a maior responsável pelo péssimo estado da casa», ou «Lúcia é o maior responsável pelo péssimo estado da casa»?

Obrigado.

Resposta:

«Lúcia é a maior responsável...» é forma correcta, mas aceita-se «Lúcia é o maior responsável...» em certos contextos. Numa frase em que ocorra o verbo ser (ou outro verbo copulativo), o predicativo do sujeito, se for realizado por um adjectivo ou um substantivo que tenha contraste de género,1 concorda em número e género  com o sujeito: «A Lúcia é bonita [adjectivo].» «A Lúcia é professora [substantivo]».2  Ora, se «Lúcia» é um substantivo próprio do género feminino, também responsável terá de se encontrar no mesmo género. A concordância não é visível na morfologia de responsável; porém, este vocábulo comporta-se como nome comum dos dois géneros: «o/a responsável». Assim, a atribuição de género pode manifestar-se pelas marcas das palavras que determinem (por exemplo, artigos) ou modifiquem (adjectivos) responsável: «a [artigo, feminino] responsável directa [adjectivo, feminino] do desastre».

No entanto, pode objectar-se que «A Lúcia é o professor» é uma sequência correcta e que, por conseguinte, «Lúcia é o responsável...» também o é. Estas frases estarão correctas, desde que se admita haver restrições de ocorrência: só me parecem possíveis em pares pergunta-resposta como os exemplificados a seguir:

(1) P: Quem é o professor aqui?

     R: A Lúcia/O professor é a Lúcia/A Lúcia é que é o professor.

(2) P: Quem é o responsável aqui?

     R: A Lúcia/O responsável é a Lúcia/A Lúcia é que é o responsável.

Observo, porém, que as respostas de (1) e (2) são ambas formadas pela equivalência entre duas entid...

Pergunta:

No Brasil, até há poucos anos, ouviam-se de pessoas, normalmente incultas e de origem rural, orações como estas: «Comprei as ferramentas por mode que preciso delas para o trabalho», «Você vai à feira por mode quê?», «Estou ajuntando dinheiro pro mode comprar uma mesa», «Pru mode de que a senhora quer falar com a minha filha»; «Aprumode que as moças estão fazendo um bolo.»

Como podeis observar, nelas aparecem as locuções «por mode», «pro mode», «pru mode», «aprumode». Sempre que as ouvia, já desde a minha infância, elas chamavam-me a atenção e deixavam-me encabulado, pois mal entendia o seu significado. Tempos depois, quando eu já era adulto, nunca pude descobrir a real origem das mesmas.

Tudo o que sei de fato a seu respeito é o seguinte: a) Que eram consideradas do dialeto caipira do Brasil falado por pessoas, em geral de pouca instrução, do campo ou de cidades do interior do país. b) O seu uso se dava em todo o território brasileiro. c) É possível que estas expressões ainda não tenham morrido de todo no Brasil hodierno. d) O significado delas, ao que parece, são por causa, por que razão (ou motivo), por que, para.

Quanto à origem dessas expressões, não encontrei nada de certo, porém, há pouco, descobri, pelo Diccionario da Real Academia Galega em linha, que em galego existe a locução «por mor de», a qual, segundo o mesmo, «Indica a causa, o motivo de que algo suceda». Pelas similitudes fonéticas e semânticas entre a locução galega e a primeira das expressões acima mencionadas («por mode»), comecei a imaginar que esta poderia ser uma derivação deturpada daquela, a qual teria passado ao português do Brasil através dos dialetos do Norte de Portugal. Então, «por mor de» teria virado, possivelmente aqui no Brasil mesmo, «por mode», sendo esta, por sua vez, também distorcida para «pro mode», «pru mode», «aprumode».

Em plena dúvid...

Resposta:

Todas as expressões apresentadas parecem realmente deturpações de «por amor de» ou «por mor de», que significam «por causa de». No Dicionário Houaiss, são subentradas de amor e mor, palavras sinónimas que se relacionam morfologicamente, porque mor é uma forma de amor por aférese do -a.

Observe-se, porém, que a interpretação das referidas expressões nem sempre é causativa:

(1) «pro mode» = «por causa de» ou «para»

«Estou ajuntando dinheiro pro mode comprar uma mesa»

(2) «pru mode de que» = «porque» ou «parece que»

«Pru mode de que a senhora quer falar com a minha filha.»

(3) «aprumode» = «porque» ou «parece que»

«Aprumode que as moças estão fazendo um bolo.»

Enquanto, em (1), a leitura de finalidade («para») pode surgir associada ao valor de causa («viajo por causa das distracções» = «viajo para ter distracções»), já em (2) e (3) o valor evidencial («parece que») afigura-se como resultado da fusão com uma outra expressão que não encontro atestada — «pelo modo» —, sinónima de «pelo jeito», que «expressa conclusão equivalente a pelo que se está vendo; pelo que as aparências fazem crer» (Dicionário Houaiss); ex.: «Pelo jeito, não teremos eleições tão cedo» (ibidem).