Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Em frases como «Eu tinha quase certeza (de) que o Carlos seria aprovado» e «A mãe do Carlos gostaria muito (de) que o seu filho tivesse sido aprovado», pergunto:

1) a omissão da preposição de diante de conjunção integrante é obrigatória, ou facultativa?

2) que explicação lógica, fundamentada, se dá à omissão de tal preposição nas duas frases acima?

3) em se omitindo, o verbo gostar (segunda frase) continua sendo transitivo indireto?

Resposta:

1) A omissão da preposição de é facultativa no uso de gostar, quando este seleciona uma oração subordinada substantiva completiva, conforme apontam João A. Peres e Telmo Móia, em Áreas Críticas da Língua Portuguesa (Lisboa, Editorial Caminho, 1995, pág. 113):

Entre os verbos que mais favorecem a supressão [da preposição] conta-se gostar:

(379) O Paulo gosta (de) que o elogiem.

2) Ainda segundo Peres e Móia (op. cit.), a lógica da omissão da preposição encontra-se numa estratégia de simplificação estrutural:

Ainda que a espontânea evolução das línguas não se compadeça sempre com princípios e com a harmonia do sistema, parece defensável o ponto de vista segundo o qual se um determinado predicado impõe o uso de uma preposição antes de argumentos realizados sob a forma de pronomes que pronominalizam frases — passem as incongruentes limitações da terminologia —, de argumentos nominais e de argumentos oracionais infinitivos, não parece haver qualquer razão estrutural para que essa preposição seja suprimida antes de argumentos oracionais finitos. A justificação para esta supressão parece ser apenas a do uso, correspondendo a uma estratégia de simplificação de estrutura, que é certamente — e felizmente — uma lei operante nas línguas naturais.

3) Em princípio, sim, porque a preposição está latente. Considerando que o verbo gostar tem um complemento oracional com o verbo não finito, é fácil ver que a preposição permanece: «gostaria de ser aprovado».

 

Pergunta:

A expressão caminhabilidade existe?

Pretendo traduzir a expressão «neighborhood walkability». Uma opção possível na inexistência de caminhabilidade será «adequabilidade do bairro para caminhar». O que vos parece?

Resposta:

A consulente propõe neologismos não atestados, já que a noção ou o conceito associados à expressão inglesa parecem não ter ainda encontrado lexicalização estável em português. Posso é dar conta de propostas de tradução, por exemplo, recorrendo mais uma vez à consulta do Linguee. No entanto, nem mesmo neste recurso encontro registo e tradução de «neighborhood walkability» (ou, numa eventual variante gráfica britânica, «neighbourhood walkability»), embora consiga aí achar walkability, vocábulo traduzido como «facilidade de caminhar».

Sendo assim, são várias as traduções possíveis, incluindo as formas e as expressões apresentadas na pergunta, pelo que a sua apreciação passa a ter índole mais estilística do que gramatical. Mesmo assim, diga-se que a aceitação do neologismo caminhabilidade, com base noutro neologismo, caminhável1, possibilita a proposta de «caminhabilidade de/do bairro», embora se trate de expressão discutível.1 Quanto a «adequabilidade do bairro para caminhar», apesar de adequabilidade estar dicionarizado (cf. Dicionário Houaiss), «adequabilidade do bairro para caminhar» afigura-se-me expressão um tanto pesada, tanto mais que não se trata de tornar o bairro adequável para nele se caminhar, mas, sim, da possibilidade de nele se caminhar. Porque não «possibilidade de caminhar no/num bairro» ou «a facilidade de caminhar no/num bairro»?

1 Com efeito, os adjetivos sufixados por -vel têm frequentemente por base de derivação o tema de verbos transitivos diretos; p. ex.: modificar (alguma coisa) > (alguma coisa)

Pergunta:

Na frase «Ao desembaracar, por seus gestos estranhos, deu pra ver que ele não era da cidade», «deu pra ver» é locução verbal? Pode haver preposição em uma locução?

Resposta:

Pode haver uma preposição depois de um verbo, dando-lhe um sentido especial, conforme se verifica no registo da locução «dar para», que, entre vários significados, apresenta o de «ser o suficiente para; bastar» («seu dinheiro não dá para nada»; cf. Dicionário Houaiss). Considerando que uma locução verbal «[...] é a designação da gramática tradicional para a sequência formada pelo verbo auxiliar e pelo verbo principal» (resposta de Sónia Valente Rodrigues), não se vê que no caso de «dar para ver» exista um auxiliar, pelo que não se pode falar de locução verbal. Mas nada impede que um verbo auxiliar se ligue a um verbo principal mediante uma preposição: «o céu começou a ficar azul».

A propósito das notícias sobre a greve que envolveu os trabalhadores da companhia aérea australiana Qantas, o exame atento de alguns serviços informativos em português revela que a forma de pronunciar esta denominação pode variar:

– Nas televisões portuguesas, ouve-se pronunciar “cantas”, dando ao q o valor de c na palavra canto (ver também aqui).

Pergunta:

Penso que, segundo a nova terminologia, já não se diz «área vocabular», mas, sim, «campo lexical».

Resposta:

Na verdade, a expressão «área vocabular» não faz parte do Dicionário Terminológico, que, no entanto, acolhe «campo lexical» («conjunto de palavras associadas, pelo seu significado, a um determinado domínio conceptual»).